“A luz está me fazendo em pedaços”
Dr. Manhattan
Vamos relembrar do seu corpo
sobreposto ao meu. De quando você suava fino em contato com minha pele, dos
seus lábios perpetrando os meus. Eu tinha prometido a mim mesmo que não
lamentaria e que sequer faria menção ao seu nome. Mas eu, como um bom e servil apaixonado,
arrasto as correntes da prisão em direção a sua fatídica memória e existência.
Eu quero relembrar o seu
corpo, meu amor. Cada detalhe perverso e delicioso, cada rusga de preocupação
na sua testa ao me ouvir dizer que voltei a pé para casa. Quero relembrar tudo,
desde o momento insano em que você entrou na minha vida até o momento triste
que você saiu.
Você saiu, meu amor. Saiu e
deixou a porta aberta, e por ela entra um forte vento invernal.
Gostaria de tentar conceber
meus dias sem você, mas isso se mostra impossível. Quando me dou conta de que
você está em cada centímetro do apartamento, e pior ainda, em cada centímetro
do meu âmago, caio em desespero. Passei a acreditar que você não é humano, que
sua existência na Terra é puramente castigo divino.
Mas vamos relembrar.
Lembra-se de quando pedimos pizza de calabresa e fomos assistir a um filme em
plena sexta-feira à noite? Sim, eu sei que fizemos isso praticamente em todas
as sextas-feiras desde o início do nosso relacionamento. Tente se concentrar em
uma específica... Aquela sexta-feira em que você me disse: eu te amo. Em meios a
mordidas na pizza e dois goles no vinho, e em enquanto a Kate Winslet gritava
dizendo que o filho da Jodie Foster mereceu apanhar do filho dela. Pois já não
bastava a Kate estar gritando, você também tinha que gritar. E as consequências
desse seu ato foram mais vis e terríveis do que qualquer filme do Polanski.
Você gritou, e me soltou na
claridade. Tudo me fez em pedaços, meu amor. Você me jogou na porra do abismo amoroso,
aquele em que a gente tenta se agarrar nas paredes, mas descobre que as mesmas
são completamente lisas. Mas sinceramente, eu nem fiz menção em me segurar.
Pois eu confiava em você, e por Deus, eu deveria ter ouvido o conselho dos
nossos pais: só confie em si mesmo.
Mas eu estava tão ciente de
que você me protegeria das águas turvas do poço, meu amor. Acreditava
fortemente que você me colocaria nos seus ombros, e diria para eu não me
preocupar. Não adianta praguejar contra os céus, dizer o quão fui burro. É
chover no molhado, é dar murro em ponta de faca. Eu tinha ciência do que
poderia acontecer. Sempre tive. Mas eu estava tão absorto na ideia de ter uma
paixão, de finalmente adentrar pelos portões dos paraísos artificiais. Eu me
ceguei de propósito, e veja agora: eu ainda permaneço cego, embora hoje em dia
a cegueira seja de dor e não mais de amor.
Vamos voltar aquele dia tão
singular, 29 de fevereiro. Depois de termos feito amor, você começou a discutir
por uma besteira qualquer. Eu sei, o motivo de rompermos não foi à discussão em
si. Nunca é. Foi tudo aquilo que ardia por debaixo dos panos, de toda sujeira
que mês após mês escondíamos. Tudo veio à tona como uma ferida podre é exposta
pelo médico. Mas o médico sabe como cuidar da ferida, e naquele momento eu
assumi esse papel. Vi ali a tentativa de fuga, de conceber enfim paz aos nossos
corações. Eu te amo, e você ainda me ama. Mas simplesmente não podemos mais
ficar juntos, porque não nos suportamos.
A lua tímida fustiga meu
corpo. Eu tomo o meu vinho mais caro em um copo de plástico, sem filme e sem
você.
E
como é péssima a sensação.