quarta-feira, 30 de abril de 2014

Dias Santos

A quinta enfim tinha virado Sexta da Paixão. A cidade de repente se esvaziou, se encolheu, como se todos temessem se divertir nos dias sagrados. Mas eu não me importava com isso, não mais. Algo em mim tinha morrido, e eu acreditava firmemente que era a minha fé. Não doeu, nem senti, mas eu sei que morreu.

Nem sequer havia vento. Os peixes sendo cozinhados com calma nas casas, famílias que ansiosas esperavam abrir seus chocolates, filmes sacros se repetindo na TV. Acendi um cigarro, e este varava a noite como uma flecha incendiária. Procurava alguém, ou procurava algo, mas não sabia exatamente o que. Procurava em mim mesmo alguma explicação para tanta frieza. Após anos e anos como uma boa ovelha, cabeça curvada perante o púlpito, apertos de mãos frouxos, olhares perdidos por cima dos bancos, saias apertadas em coxas brancas, calças sociais, Bíblias velhas, hinários amarelados... Algo se perdeu. Algo se soltou. Na escuridão, na vastidão carnal. Era eu, sendo desemparado pelo seio cristão. Enfim solto, mas para que?

Encontrei meu grande amor na igreja. Um homem. Sim, era errado. Erradíssimo, inconcebível, nojento. Primeiramente achei que seria apenas um amor platônico, sem grandes chances. Mas ele veio. Embalou-me em seus braços em noites frias em acampamentos. Enquanto aleluias eram entoadas na noite, ele varria com perícia meu corpo. Cada centímetro, cada cicatriz, cada sinal... Ele me conhecia. E eu o conhecia. Era aquilo, amor puro. Como Deus ama seus filhos hipócritas e bajuladores.

Mas descobriram. E depois de tantas conversas infrutíferas e conselhos frouxos, decidimos sair da igreja. O mundo enfim. Álcool, drogas, livros, filmes, cultura, liberdade, tudo aquilo proibido. O desejo fluía cada vez mais forte, impossível de ser controlado. Eu estava apaixonado, e eu sabia o quanto isso era terrível. Eu estava à mercê. Eu estava frágil.

Agora, Sexta da Paixão declarada, caminho pelas ruas. Meu parceiro decidiu viajar, comer o velho e enjoativo peixe de coco. Não o repreendo, a religião ainda é muito forte nele. Mas e eu? E sobre a morte da minha fé? Tudo é labirinto, tudo é beco sem saída. Sinto-me cansado, para dizer a verdade. Talvez minha fé fosse cansaço, e quando decidi despertar e ver além do coelho e da cartola, vi um mundo igualmente podre. Sem Deus, sem fé, sem nada. Oco, como um sepulcro.

Sábado de Aleluia

Domingo de Páscoa

Haverá uma ressuscitação. Da minha fé, suponho.