quarta-feira, 10 de maio de 2017

Diga Aquela Palavra

Acho que não seria exagero dizer que passei por vários momentos da minha vida dizendo essa palavra. Calma. Ou as vezes completando com um ‘calma, cara”. Eu disse calma quando tive que apresentar um trabalho na frente de toda a classe. Disse calma quando tomei meu primeiro porre e vi tudo rodar. Disse calma quando fui prestar vestibular. Eu disse calma, há muito tempo, quando na infância eu senti algo estranho dentro de mim observando outro menino. Eu disse calma quando decidi contar isso pra minha mãe. Eu disse calma quando meu pai me ameaçou me bater por causa disso. Eu disse calma quando tomei a decisão de sair de casa. Eu disse calma quando um homem entrou dentro de mim. Eu disse calma quando me vi sem dinheiro pela primeira vez. E eu disse calma quando ele bateu a porta e foi embora.

E tento dizer agora.

Tá chovendo em Recife. Chuva de derrubar barreiras e alagar ruas. Dentro do quarto olhando pra essa chuva eu tento me alinhar e conseguir achar uma maneira de sair disso. Então lembro de dizer essa palavra. De senti-la na minha boca como fumaça, ou como doce, e saboreá-la. Voltar a compreender que nenhum problema é indissolúvel, que nenhuma chuva é eterna. Dou voltas e mais voltas em mim mesmo. Dói. E eu sinto a dor aflorar como uma besta que surge da terra. A terra de mim, as bestas que se escondem em mim. Meus pesadelos não me deixam dormir, meus medos não me deixam acordar. Tento encontrar na neblina que são meus dias os pilares da sanidade, e o que encontro são apenas vultos. Eu tento dizer “calma” e não consigo. Mas eu tenho que dizer essa palavra como uma oração, um mantra para espantar os maus espíritos.

Calma.


Diga mais uma vez. 

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Senhor da Curva do Tempo

Ainda enxergo o cinza enfeitando o horizonte. Calmo, paciente e completo. Sigo tateando, procurando em mim mesmo a bússola quebrada. Eu preciso me orientar, repito. Preciso achar a saída disso. Mas o cinza me cobre, me lava e me enche. Ele é meu homem, é meu amante e é meu amor. A quem quero enganar ao sorrir, ao brincar, ao fazer piadas? A minha alma turva se retrai cada vez mais e não são poucos os esforços para buscá-la mas ela escapa das minhas mãos.

O cinza tirou minha fé. A bíblia agora são folhas amareladas e soltas no meio dos livros seculares. Deus não me ouve, não presta atenção. Tento ser racional, e enfim decidir o que quero. Mas o cinza é senhor, senhor da curva do tempo.

Ainda não vejo a saída do cinza, mas ela existe. Em mim e nos outros, nisto ou naquilo. No meu eterno pecado e deleite, no meu riso e minha perspicácia. Que o cinza saiba enfim da madeira de lei que é meu desejo de viver e existir.

E ele não me corrói.

domingo, 4 de setembro de 2016

Rua do Apolo

Entendo teu jeito mas não gosto.

Ele disse isso com um cigarro atravessado na boca e o rosto composto numa expressão de tédio. Tédio, tédio, tédio... os carros passavam lentos na rua apinhada de gente, a boate piscando mil cores, ambulantes vendendo três cervejas a dez reais, cheiro de noite no seu auge. Eu estava no brilho, com um copo de plástico com alguma bebida no qual não sabia o que era, e olhava para os seus lábios carnudos de um jeito débil. Ele olhava agora com um certo desprezo, escárnio. Eu não era mais interessante, se um dia eu fui. Ele olhava pros lados parecendo ansioso por alguém, eu olhava pra baixo buscando refúgio. Ambos procurávamos paz e descanso, amor e tesão, amizade e carinho. E nós tínhamos achado isso um no outro. Mas preferimos ignorar e esquecer. Por ora.

Ele jogou o cigarro fora e saiu pisando forte, embora estivesse mais bêbado do que eu. A mim restou sentar na calçada, e curtir um brega que começava a tocar no bar.

sábado, 28 de maio de 2016

Homossexuais Também Sabem Mentir

O que Ulisses propunha para si mesmo, no auge dos seus tumultuosos vinte anos de vida, era poupar-se de desgastes desnecessários. O cacto perigosamente equilibrado na janela demandava mais cuidados do que um numero expressivo de pessoas em sua vida, demandava um carinho outrora apenas direcionado a homens que não mereciam. O que Ulisses almejava mais que tudo era sair incólume do festim de dores, sair ileso do carnaval de trivialidades que pareciam surgir de todos os lugares. Ele necessitou pausar momentos cruciais de sua vida para perceber que nem tudo que reluz é ouro, que homossexuais também sabem mentir.

Tão docemente introduzido a conceitos desconhecidos, Ulisses conheceu o amor aos 17. Ele era alto, magro e branco. Não gostava desse tipo de homem, sentia que não deveria ceder mais prazeres a um grupo completamente privilegiado em todas as instâncias. Mas foi, cedeu a prazeres carnais, e naquele momento, chamou de prazeres imundos. A palavra sagrada girava na sua cabeça constantemente o lembrando de suas sinas. Mas o rapaz o convenceu a ficar, a tentar mudar o quadro. Olhando por um lado bom, Ulisses aprendeu e se aceitou, e compreendeu que não havia absolutamente nada de errado com ele. O gentil rapaz disse que o amava, e ele acreditou.

Merda, ele acreditou.

E sim, ele estava mentindo. E a dor dessa mentira o feriu mais que mil agulhas o machucariam. Conheceu enfim o amargo gosto da decepção, entendeu que pessoas fingem. Deus voltou a trovejar e exclamar que ele iria para o inferno. E Ulisses chorou por homem, chorou pelo sexo, chorou por amor.

Depois de tanto chorar Ulisses se levantou, maior que seus medos e maior que suas angústias. Saiu e bebeu e amou diversos homens. Adotou uma planta, adquiriu novos hábitos, conheceu pessoas. E a vida voltou a florescer. Hoje percebe seus erros, e ri deles. E constata, com um sorriso de canto de boca, que a mentira não possui sexo.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Cheiro de Homem (A pupila então se dilata)

A pupila então se dilata, a corda se rompe e o cheiro se cria. Meu corpo se funde ao teu, desencadeando uma sensação tão boa e única. Você gira para o lado, sorri, e entende o momento. O triunfo, o crescimento de uma coisa inexplicável. Seria possível narrar meus orgasmos? Seria possível descrever em escrita algo simplesmente indescritível?

E por falar em escrever, tua boca escreve caminhos no meu corpo. Escreve e perpetra um marco. Feridas na minha pele, garganta apertada, o teu odor morando em mim. Você sabe o quanto amo teu cheiro. Cheiro de homem, cheiro daquilo. Daquilo sussurrado nos ouvidos das comadres, abafados com risos afetados. Aquilo que você sabe que é errado, ou finge não saber. A dança feita em cima da nossa própria cova. Eles falam que somos doentes, que somos aberrações. E eu não consigo compreender tanto ódio, eu não consigo compreender tamanho medo.

O medo.

O medo que verte enfim dos teus poros. Ele não mais interessa, ele não mais existe aqui. Agora só existe algo superior até mesmo o amor, e eu não sei te dizer. Mas sentir... Tuas mãos criam um laço na minha cintura, e o encaixe é magistral. Tua boca encontra meu membro, e eu mais uma vez não sei o que falar. O som seco do gemido é quase inaudível, ele se perde no meio de nós. Meu olho revirando é sinal de deleite, de dever cumprido.


Porque eu estou toda derretida por você, meu amor. 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Mas Você Precisa Morrer

Você precisa morrer, e essa certeza é mais latente que meu amor por você. Amor esse banhado no meu suor, no meu sangue. Você talvez nunca compreenda o que eu tive que abdicar por você. Talvez nunca compreenda os sacrifícios feitos no altar dos meus limites, onde verti todos os meus anseios por você. Talvez nunca compreenda as feridas fundas na minha carne, geradas pela correntes da sua paixão. Talvez nem me compreenda, talvez não me enxergue mais.

Mas eu sei que você precisa morrer. O anoitecer me lembra disso, me lembra dos nossos pecados. Você nunca lidou muito bem com o que você é, com o que você gosta. Tudo isso foi muito novo pra você, e eu até compreendo. Mas você aprendeu rápido, aprendeu a sugar minha energia das melhores e das piores maneiras possíveis. E eu te odeio por isso.

Eu não vou te matar de verdade, pelo menos não dentro de mim. Lá no fundo você vai continuar dançando sua dança maligna junto ao meu deleite e ao meu desejo. Oh como eu te odeio e como eu odeio o que você representa na minha vida. Mas eu aceitei, te aceitei como força motriz. E se eu te desligar eu vou desfalecer em algum ponto da jornada, eu vou enlouquecer em algum ponto da vida.

Você precisa morrer, mas não agora. Talvez nunca.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Ele Não Mora Mais Aqui

Ele abaixou a cabeça como se fosse chorar, mas não choraria mais nenhuma lágrima sequer. O corpo dolorido, o rosto chupado depois de tantos meses de lutas inúteis e expectativas frustradas. Antes lhe havia vida entregue num doce festim convidativo. Mas agora a coisa mudou de figura e uma nuvem escura pairava sobre sua cabeça. A natasha pela metade diante dele, o maço de dunhill amassado, ainda o cheiro de gozo entranhado nele. O gozo dele. A foda de despedida, e aquilo doía nele como mil facas na carne. Acabou então, acabou uma coisa tida como infindável. Infindável, infinito, infalível. Ele adorava dizer palavras com "in". E ele, o que foi embora, ria num sorriso que fazia o brilho do sol parecer um flash de uma câmera. Era a pior parte, o sorriso. Dele havia arrancado pecados e medos, delírios e forças. Mas agora acabou, ele disse em voz alta, acabou acabou acabou
Não há mais nada sob esse sol
Então se levantou e caminhou até a janela. E ali nada viu, pois sua visão estava turva de lágrimas.