terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Fotografia em Família

Era Natal. Todas as luzes acessas, pomposas ceias, presentes baratos. Eu me afastei um pouco da mesa, e fui bebericar meu vinho na varada. Confesso que o burburinho das conversas falsas entre meus parentes me enojava a tal ponto que eu estava prestes a vomitar. Mas eu não era o único: Todos os meus primos pelo visto fugiam também. Todos nós estávamos na casa dos vinte, ou fazendo a transição. Mas também confesso que gostava de poucos deles. Eram pudicos demais, ou hipócritas demais. Tão jovens e tão atrasados. Fui então conversar com uma prima distante, vinda do interior. Seu olhar conciso, de quem também queria fugir dali, me enfeitiçou a tal ponto que mal pude conter o entusiasmo. Mas eu gostava de garotos, e ela logo percebeu. Não disse nada, claro. Infelizmente determinadas coisas transparecem em gestos e expressões, sempre algo que não se pode evitar. Ela deu uma desculpa qualquer, e se afastou.

Com meu cálice já vazio, me obriguei a entrar aquela selva de vozes e gritinhos excitados de fofocas. Peguei a garrafa de vinho sem pudor algum e voltei. E no mesmo lugar onde minha prima estava agora tinha um garoto do qual eu não conhecia. Aproximei-me dele.

- Oi.
- Olá.
- Com que você está?
- Com teu primo Beto.
- Ah, massa. E qual é teu nome?
- Gil.
- Prazer, Patrick.

Apertamos as mãos. Foi delicado, mas ao mesmo tempo forte. Talvez fosse impressão minha, mas por um momento eu tinha sentido que ele havia alisado meu polegar.

- Quer vinho?
- Ahn... Sim, obrigado.

Ele mostrou a taça e eu enchi a ponto de transbordar. Parecia que eu queria embebar o garoto.

- Foi muito?
- Não, está perfeito.

Seria entediante dizer tudo o que conversamos, mas houve um momento interessante.

- Você é solteiro?
- Por quê? Interessado em mim?
- Talvez...

E ele sorriu. Um sorriso gostoso e espontâneo. Aquela boca parecia emanar um convite.

- Bom, eu tenho que ir agora.
- Mas já?
- É... Eu e teu primo vamos lá em casa...

Meu primo Beto veio do fundo da selva. Cumprimentou-me e fez algo que me surpreendeu: Deu um rápido beijo em Gil. Aquilo me surpreendeu, confesso. Não achava que Beto fosse...

- Temos que ir agora Patrick. Já falei com todos lá dentro – Beto praticamente arrastava Gil.
- Ah, ok.
- Até mais Patrick, e obrigado pelo vinho – Gil deu um largo sorriso.
- De nada.

E se foram. De mãos dadas, desafiando a conservadora família. Eu permaneci com o vinho na varanda. Volta e meia entrava na casa, trocava algumas palavras com o pessoal. Mas a minha ceia foi na varanda.
Essas coisas só acontecem no Natal.

Acordei. Gil dormia ao meu lado. Então fora tudo um sonho. Fui a cozinha, bebi um copo d’água. Hoje já era 23 de dezembro, amanhã era a grande ceia com a família. Gil detestava aquilo, mesmo após cinco anos de relacionamento. Eu não conseguia parar de pensar no sonho. Na verdade, o que tinha acontecido na vida real era o oposto. Era Beto na varanda, com a garrafa de vinho a conversar com Gil. Foi eu a arrastá-lo para fora, a fim de leva-lo para meu apartamento para nós fazermos nossa própria ceia.

Então, num ímpeto terrível fui vasculhar o álbum que tinha em casa. Todo ano, religiosamente, minha família tirava uma foto com todos. E eu vi: A cada ano dos cincos anos de relacionamento entre eu e Gil, eu notei a aproximação dele com Beto. No primeiro ano, distantes e normais. No segundo, lado a lado. No terceiro, uma mão no ombro. No quarto, um braço passado pelo corpo. E no último ano, mesmo com o máximo de discrição possível, podia se ver as mãos de ambos entrelaçados. Por incrível que parecia eu não me abalei. Apenas fui buscar uma garrafa de vinho. Acho que a bebida oficial da depressão.

Estou ansioso pela próxima foto da família.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Vida Lá Fora

Naquela rodinha de amigos enquanto todos fumavam maconha, ele pensava. Pensava, pensava... Pensava em ir embora dali. Ali não era seu lugar. Um lugarzinho bem profundo em sua consciência martelava lhe dizendo que aquilo era errado, que Deus o julgaria. Ele recusava todas as vezes que lhe oferecia o cigarro, compenetrado em seus pensamentos. Eles já tão chapados não estranhavam. O que seus pais iriam dizer se o visse em companhia de maconheiros. Ele cairia em desgraça, a honra da família ultra cristã e conservadora ficaria maculada. Só conseguira escapar aquela noite pois estava em uma festa de amigos de confiança, amigos que os seus pais juravam que eram crentes devotos. Ele enfim viu a hora. 23h. Não daria pra ir sem levantar suspeitas. Então se encostou no sofá, e quando o baseado lhe foi ofertado mais uma vez, ele aceitou.

Não era a primeira vez que fumava, e muito menos a primeira vez que bebia. Às vezes fumava cigarros no pátio da escola e já tinha transado com umas garotas. Um adolescente “saudável”. Mas ele precisava de mais, e ele tinha plena certeza disso. A vida não era só feita de maconha, bebida e fodinhas. A vida era mais. Era aquilo invisível sobre o visível, era aquilo que acontecia pra valer no mundo lá fora. Eles só eram uns garotinhos da classe média que se achavam o máximo por fazerem o que estavam fazendo. Mas eles todos sabiam – e ignoravam – a vida lá fora. Os homens simples que movimentavam o país e as mães solteiras que faziam o impossível para darem vida digna aos filhos. Eram seus próprios pais, que mesmo envoltos nas cortinas da hipocrisia e da rotina, lhe proporcionavam o pão. Mas eles não se interessavam por isso. Apenas ele se importava, apenas ele tinha ânsia de viver tudo que haveria de ser vivido.

E quando de repente a porta se abriu e os pais de quase todos ali romperem aos berros, ele mantinha uma expressão serena. De alguém pronto para viver. Sim, no fundo ele sabia que aquelas indagações soavam estúpidas. Mas ele também sabia que viveria mais intensamente do que os seus amigos. Sem ser notado, saiu do aposento e foi ver a cidade. Pálida, trêmula, esguia. Ele sorriu. A vida começava agora. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O Corpo

Era a boca. Definitivamente era a boca. A perfeição em forma de lábios. O doce negrume que me chamava cada vez mais. Que lambia com delicadeza, que beijava com fervor. E quando se afastava de mim, eu faltava suplicar e pedir feito criança. Decidida, não retornava. Ia embora. Só voltava quando queria. E eu permanecia chorando e suplicando. Mas crianças precisam ser repreendidas.

Eram os braços. Definitivamente eram os braços. Fortes, rígidos, alvos. Que me seguravam com tamanha destreza. Que me envolviam com doçura. Ali eu encontrava acalento. Eram meus portos seguros. Mas eles também iam embora. Jogava-me no ar, eu suspenso no nada, e me deixavam cair. Nada adiantava implorar.

Era o genital. Íntimo, incauto. Portal de noites de prazer, dono da minha satisfação. O único que tinha o poder de dissolver qualquer mau humor. Era aquilo que mantinha o segredo da plenitude. Mas ele não estava isento. Ia embora.

Era o coração. Perfeito, forte, íntimo. Era o coração o centro de todo nós, o local exato da extrema felicidade. Ali não tinha como discordar ou discutir. Ali, e só ali, eu sentia que as coisas ficariam bem. O coração, em seus múltiplos batimentos, emanava a essência do nosso amor. Mas lógico, este também fora embora.  E quando este partiu, acho que perdi a noção das coisas. Desaprendi o significado de “perfeição, força e intimidade” em relacionamentos. Agora permaneço só.


É a solidão.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Atos

Senta. Pega algo pra beber. Fuma alguma coisa. Interaja comigo. Olhe nos meus olhos. Diga-me que tudo irá ficar bem. Diga-me que não houve culpados. Diga-me que tudo não passou de um mal entendo. Respire fundo. Traga mais forte. Beba mais. Sorria idiotamente. Galanteie-me. Seduza-me. Beije-me. Ame-me. Gema. Morda. Goze. Vire-se pra mim. Diga mais uma vez que tudo vai ficar bem. E durma.

Daqui do meu travesseiro eu te observo. Tão angelical dormindo, como uma criança indefesa. Eu queria que você soubesse o quanto eu me arrependo. Por mais que você diga que tudo irá se resolver, que eu não tinha como saber, me martirizo. E talvez enfim, um dia tudo isso se resolva. Por enquanto vamos dormir.

Acorde. Deseje bom dia. Beije-me. Pergunta-me se eu dormi bem. Sorria. Diga que dormiu perfeitamente. Diga que sonhou comigo. Ria. Diga que não está mentindo. Beija-me mais uma vez. Vai ao banheiro. Vai a cozinha. Prepara o café. Volta com uma bandeja. Diga que é pra comer tudo. Beije-me. Vai tomar banho. Vai trabalhar. Vai viver.

Acredito que eu tenha que fazer algo antes que o sol se ponha. Eu não consigo me perdoar. Eu simplesmente não consigo. Eu sou tolo, fraco. Mas não sou tolo e fraco a ponto de não fazer o que planejo fazer.

Chegue. Abraça-me. Beija-me. Pergunta como estou. Pergunta o que tem pra jantar. Vai ao banheiro. Toma banho. Volte. Jante. Diga como foi seu dia. Pergunte como foi o meu. Fique preocupado. Pergunte o que eu tenho. Diga que é pra eu esquecer isso. Faça uma cara de incredulidade. Discuta comigo. Xingue-me. Insulte-me. Humilhe-me. Diz que vai embora. Grite assustado. Sangre. Caia. Morra.

A polícia está vindo. Eu não irei oferecer resistência. Espero que compreendam que eu tive que fazer aquilo. Eu fui um tremendo filho da puta. O que eu fiz não se faz a ninguém. Eu traí. Mas se a culpa é minha, porque o matei? Ora, por acaso ele não me traiu também? Mas ainda assim a pergunta persiste: Porque eu matei? Um egoísmo meu, talvez. Cego como um velho. Um surto, talvez. Como um maníaco sanguinário. A polícia chegou lá na portaria. Estou consciente o suficiente para me matar. Nunca imaginei que matar alguém lhe deixava atordoado, como se estivesse bêbado. Sangue. Tanto sangue eu tenho. Ou tinha. Preto e vermelho. O teto está girando. Ele está me olhando, um olhar frio e distante. A boa notícia é que nós vamos nos encontrar. Espero. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ai Dudu

Você se lembra Dudu, de quando você me possuía com fúria naquele cantinho escuro do parque? De como você me conduzia naquele mar de prazer indecente e me dizia que tudo iria ficar bem? Pois eu me lembro. E também me lembro com tamanha facilidade que você era tudo que eu desejava. Que você, Dudu, era o homem da minha vida. Mas tipo, você não se importa. Aqui estou suplicando pela sua atenção, mas você simplesmente prefere as garotas. Ai Dudu, porque você não volta pra mim? Porque você não volta a me dizer que tudo irá ficar bem?

Mas sabe Dudu, estou até indo bem. Há outros garotos interessantes além de você. Na verdade escrevo pra ti apenas pra te dizer o quão estou indo bem. Não, mentira. Eu não estou bem. Ou estou. Eu não sei. Às vezes olho pras ruas esperando te reconhecer naqueles emaranhados de pessoas tristes e cansadas. Mas você não está lá. E sabe Dudu, dou graças a Deus. Pois você é diferente dos outros. Você Dudu, é especial. E sabe o que é pior? Você sabe disso e internamente se gaba. Como você é orgulhoso Dudu! Queria socar esse teu rosto lindo e dizer quão estúpido e egocêntrico você é. Mas mesmo com tudo isso tudo Dudu, eu te amo. E não é aquele tipo de amor de boteco, coisa leviana. É amor mesmo, amor de matar e morrer. Amor de mover céus e terra. Amor, puro e simplesmente amor.

Porque você não volta Dudu? Porque você não diz que sou teu homem também? Sabe, eu sei que sou teu homem. Pois você me dizia isso na hora que atingia o prazer. Mas agora não diz nada. Ai como te odeio Dudu!


Mas volta Dudu. Volta pra este pobre espírito bêbado. Volta Dudu, por favor. Volta a me possuir, volta a me dizer que sou teu. Pois sou teu. Só teu. Teu Dudu. Meu Dudu.

A Hora da Solidão

Meus pés me comandavam agora. Mas lá no fundo eu tinha noção de que deveria sair dali o mais rápido possível. Havia sangue em minhas mãos. Escarlates, rubros, vermelhos, brilhantes. Eu sentia um frio horrível na espinha, como se alguém tivesse me alisado com uma faca. A rua estava calma, meia-noite declarada. E eu tinha acabado de cometer um assassinato.

Se eu fechasse os olhos, ainda podia vê-la estirada numa poça de sangue. A faca a pingar o líquido nas minhas roupas. Os cães começarem a latir, chamando atenção. O seu rosto estava estampado o mais medonho dos medos. Não me arrependo do que eu fiz, mas se pudesse voltar no tempo eu teria tomado uma decisão melhor.

Era como sentir seu ânimo ser sufocado aos poucos. Imagina uma pessoa que sempre jurou te amar, te defender, te dar carinho. E que se essas coisas fossem esquecidas quando você tivesse dito aquilo. Eu quero, mas não consigo perdoa-la. Fazer isso seria ir contra mim mesmo. Ela teve o que mereceu, enfim reconhecia. Ainda era um ato abominável, assassinar a própria mãe, mas ela também não havia cometido um erro ao me odiar após eu ter dito que preferia os homens?


Não tinha lua naquela noite. Não havia malandros e prostitutas nas vielas e bares. Nem sequer havia vira-latas a ganir. Eu estava só no mundo agora. Mas pra falar a verdade, acho que sempre estive só. 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Adeus ao Mariano

Pouco a pouco, Mariano se aninhou em meus braços. Seu peito definido, seus músculos rijos como pedra em contato com o meu. Passou as mãos nos meus cabelos e desceu até o lóbulo da minha orelha direita. E numa voz que era uma mistura de desejo e rouquidão, disse:

- Agora, por favor.

Eu obedeci. Minha mão rapidamente desceu em seus genitais. Uma sutil brincadeira na madrugada. Ouvia seus gemidos fracos, suas súplicas de prazer, suas leves mordidas na minha orelha. E eu, hábil, a brincar com seu pênis. Não muito tempo após ter começado, senti um líquido espesso escorrer pela minha mão. E Mariano soltou um suspiro de alívio, de prazer. Deu-me um rápido beijo e foi ao banheiro. Durante todo o ocorrido, eu não havia sentido nada. Nadinha mesmo. Era como se fosse uma criança entediada brincando com um brinquedo do qual menos gostava. O chuveiro foi ligado. Mariano cantava baixinho, feliz da vida por causa de uma punheta. Eu não o culpo. Ele não tem nada a ver com meus problemas.

Alias, talvez até tenha. E talvez ele seja o principal problema. Após dois anos de um relacionamento satisfatório, com altos e baixos comuns, o amor enfim acabava. Da minha parte pelo menos. Não sei o que ocasionou isso. Tento pensar, tento puxar do fundo da memória o momento em que tudo mudou. Mas não encontro a lembrança exata. Apenas que de uma hora pra outra o amor acabara.

Eu queria dizer a Mariano, dizer o quanto sentia muito. Mas não tenho coragem, ele me parece tão feliz. Logo agora que foi promovido em seu trabalho. Nós passamos por tanta coisa, por tantas barreiras, para acabar assim. Não me reconheço. Eu amava o cara que estava no banheiro. Mas agora... Sinto apenas simpatia, amizade, nem sei definir.

Enfim levanto da cama. Olho-me no espelho. Apenas uma sombra da mulher que fui. Negras olheiras manchavam meu lindo rosto. Fios brancos já começavam a aparecer. Fiquei mais magra, meus dedos parecem galhos de árvore. Então desatei a chorar, baixo pra Mariano não ouvir. Que tola eu sou. Que cega eu fui. Reconheço agora que eu percebia que o amor tinha acabado, mas não queria desistir daquele relacionamento. Eu não sei por que permaneci nessa ilusão. Então surge uma desagradável ideia.

Eu iria embora. Pra bem longe do Mariano. Ele não merecia ser infeliz ao meu lado. Por milagre, ele não saiu do banheiro enquanto eu arrumava minhas coisas. Escrevi uma pequena carta, explicando ou pelo menos tentando explicar os motivos do término. Parei por um instante na frente da porta. Tentei ouvi algum ruído dentro do banheiro, mas só havia silencio. Então um tiro ecoa pela madrugada.

Desesperadamente tentei abrir a porta, mas estava trancada e bloqueada por alguma coisa. Chutei, esmurrei, empurrei com o ombro. Nada. Procurei pelo quarto. Não tinha nenhum objetivo que me fosse útil. Os vizinhos já se acordavam. Eu chorava descontroladamente, temendo o pior. Forcei mais uma vez e percebi que o peso que estava na porta caiu. Abri, e me deparei com uma cena que nunca mais vou esquecer.
Mariano estava sentado no vaso, com a cabeça banhada em sangue. Ainda estava molhado por causa do banho, com a água descendo pelas suas pernas. Tinha um revolver que eu desconhecia a origem na mão, que repousava no seu colo. Seus olhos abertos eram apavorantes, e sua boca cheia de vísceras me causou enjoos. Sentei-me no chão, já sem forças pra chorar ou permanecer em pé. Por que ele fez aquilo consigo mesmo? Tinha uma vida toda pela frente, com um ótimo emprego e família e amigos que o amavam. Lentamente foi me aproximando do corpo, a fim de pegar um pedaço de papel que estava preso na outra mão.

Ali dizia que o motivo de sua morte era que ele não me amava mais. E ele sabia que eu também não o amava. E que só iria se matar porque não imaginava sua vida sem mim. E só. Minha vontade na hora foi socar o corpo dele. Eu não valia uma vida, ninguém vale. Ele não tinha o direito de se matar por um motivo tão banal. Então fui ver se na arma havia alguma outra bala. Não tinha. Talvez ele tenha temido que eu me matasse também, após ver seu corpo inerte. Levantei-me, com as lágrimas já secas, e fui pra janela. Era isso, eu iria me matar também. Que burro, que burro! Se ele não me amava mais, como não podia imaginar sua vida sem mim? Acredito que tinha outros motivos, ignorados por mim. Mas agora isso não importava. Iria me matar, por motivos fúteis. Pois tudo isso foi ocasionado por motivos fúteis.


Ao acordar dentro de uma ambulância, ouvia uma voz distante a murmurar palavras incompreensíveis. O enfermeiro dizia palavras de conforto, lamentando o ocorrido. Aquele enfermeiro é tão parecido com o Mariano, pensei. Então recomecei a chorar. Eu devia ter conversado com ele antes, tentado consertar mais uma vez as coisas. Mas agora era tarde demais. Iria ter esse peso na consciência pro resto da vida. Adeus ao Mariano, pois ele foi embora. E enfim levou um pedaço de mim comigo. Aquele pedaço aonde residia o amor e afeição que existia entre nós.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Consumação

Ele ardia. Por conta da gasolina, as chamas rapidamente espalharam-se. Ela só observava. O fogo, que parecia seres míticos numa dança ritualística, lambia o corpo do namorado com fúria. Sua dor foi sentida na forma de grito. Um estridente som enchia o aposento, que começava a ficar cheio de fumaça. O cheiro de carne sendo queimada rapidamente apareceu, fazendo-a tapar o nariz delicadamente. Os olhos do seu namorado eram de pura agonia e dor. Já os da garota, de um brilho sinistro.

Ela viu as fotos. Seu namorado aparecia com outra menina, abraçando-a e beijando-a. Lágrimas rapidamente brotaram, e fez força para não derramá-las. Não iria chorar por aquele desgraçado. Guardou cuidadosamente as fotos no envelope. Alguém as enviara pela manhã, e não se sabia quem. Olhou pela janela, a fim de talvez ver algum vislumbre do remetente. Nada relevante. Foi na despensa, e rapidamente o achou. Um galão de gasolina.

Sempre tivera fascínio pelo fogo. Achava uma coisa mágica, divina, e principalmente, tentadora. Sempre que tinha raiva de alguma pessoa, a imaginava queimando. Ouvir o crepitar das chamas, o cheiro que sempre aparece, e até o grito que a pessoa entoa. Sentia prazer nisso, um prazer proibido.

Ligou para o namorado. Ele viria dali à uma hora. Tempo mais que suficiente. Além da gasolina, também havia trazido uma corda e um pequeno peso, uma barra. Sentou-se tranquilamente na frente da televisão. As fotos estavam no seu colo. Seria hoje que seu prazer seria consumado.

O namorado chegou. Ela, indiferente, o beijou. Ele estranhou o comportamento dela:
- Está tudo bem?
- Tudo ótimo
Ele olhou para o colo dela.
- O que é isso?
- Abra
O rapaz a obedeceu. Quando viu seu conteúdo, ficou sem palavras.
- Explique. – ela disse
- Amor... – começou a gaguejar – eu, eu...
A garota ergueu o peso e o usou para bater na cabeça do namorado. Quando acordou, estava amarrado. Ela estava sentada, observando-o.
- O que significa isso?
- Você me traiu.
- Mas não precisa disso – sua voz era uma mistura de raiva com medo – vamos conversar...
- Não há nada para conversar – ela pegou a gasolina. A cor fugiu do rosto do garoto, que começou a gritar.
- Me tire daqui! – olhava para a gasolina e para o isqueiro que ela trazia – não há necessidade disso!
- Não há, é verdade – ela estava terrivelmente calma – mas você me irritou. E você sabe o que imagino quando fico irritada.
- Sua louca! – começou a espernear – me tira daqui! Sua louca!

- Agora é tarde demais – derramou a gasolina no corpo do namorado – Realmente, agora é muito tarde.
Sim, era tarde. Seu desejo a dominava. Tinha que vê-lo queimando. Acendeu o isqueiro. A voz do garoto nada mais era do que um urro inaudível. Então ela jogou.

O fogo rapidamente ganhou seu espaço. O urro tornou-se de dor. Em vão, ele tentou se libertar. Guinchos, que podem ser chamados de sons, saíram de sua boca. A garota observava encantada, enfeitiçada pelos seres do fogo. Faziam sua dança com perfeição. Os gritos do rapaz começavam a morrer junto com seu dono. Sem ela perceber, o fogo começava atingir os móveis e a cortina. Os vizinhos começavam rodear a casa, gritando ou pegando mangueiras e baldes d’agua. Ela estava imóvel, assistindo aquela maravilhosa cena. Então o fogo veio em sua direção, e ela o abraçou. Ele começou a percorrer seu corpo, fazendo seu vestido se transformar nas cores alaranjadas, as cores daqueles seres fabulosos. Então passou para seu cabelo, e como numa mágica destes seres, o mesmo transformou-se em longas cascatas de chamas. Sentia o fogo penetra-lhe o corpo, mas não sentia dor. Sentia apenas prazer. A casa toda agora ardia. A inimiga eterna do fogo, a água, entrou na dança. Os vizinhos não puderam acreditar no que viam. A menina inteira estava pegando fogo e parecia não se importar. No último momento, olhou para as chamas. Sorriu um sorriso torto, defeituoso por causa dos lábios queimados. Abriu os braços. Iria juntar-se aos seres mágicos, numa eterna dança ardente.




quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Intragável



O cigarro parecia uma lanterna varando a noite. Eu tenho consciência de que deveria parar de fumar, mas os fatos me impedem. Ele estava do outro lado da sala, mas na verdade ele estava do outro lado da cidade. Ele era como uma sombra esguia, uma coisa escorregadia. E depois de tantas juras falhas de amor, depois de tantas promessas não cumpridas, eu agora me aquieto. Com um cigarro na mão, observo e penso.

O solitário maço na mesa, ao lado das frutas quase podres, enfeita o apartamento imundo. Ele odiava aquilo. Dizia que eu ia me matar, que ele odiava o cheiro, etc. Mas ele nunca entendeu meus motivos pra fumar, se é que há motivos. Mas depois ele sorria com um sorriso metálico, e me beijava. Sabe, desses beijos quentes. E ia comprar leite e pães, com o gosto do meu cigarro em seu hálito. Ele só aceitava isso porque me amava. 

E sempre após o sexo, ou nas noites de verão, aquela coisa suarenta e pegajosa, ele sempre me pedia um. Talvez fosse hipocrisia da parte dele, ou apenas queria participar e entender a necessidade de se fumar após o ato. Eu ria, e dava um cigarro pra ele. Ele ria ainda mais, e sua luz completava a minha.
No dia que terminamos eu fumei um maço inteiro. Assim, como quem bebe um copo d’água. Os olhos deles estavam vermelhos de tanto chorar, e sua veia no pescoço saltava quando ele reclamava do meu maldito cigarro. Eu replicava, e uma nova discussão começava. Até que uma hora ele pegou suas coisas, bateu a porta, e foi embora. 

Agora minha única companhia é o mal, é o ruim. É o suave e o maléfico. Mas é o que há. É meu único amante. As estrelas cintilam nos céus de primavera. E eu aqui, só. Pois meu cigarro acabou.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Bom Samaritano

Há alternativa? Eu não sei. No fundo do meu ser, eu queria que houvesse outra possibilidade. Mas não tem. Não vejo escapatória desse trágico destino. E eu não tenho mais tempo.

***

Mantinha um emprego simples, mas confortável em uma indústria de estofados. Todo o dia, das sete as cinco, eu encarnava o tipo perfeito de empregado dedicado e trabalhava quase sem parar na administração da fábrica. Eu não notava a passagem do tempo até a hora do almoço, e depois a hora da saída. Chegava em casa, comia algo, tomava banho e ia dormir. Lia às vezes um livro, ouvia uma música, via uma televisão. Aparentemente eu estava confortável com aquela situação. Mas a rotina me cansou, e comecei a buscar desesperadamente um passatempo, uma distração que me desse motivo para ainda permanecer ali. Então conheci Valéria.

Valéria era uma garota alta, no auge dos seus vinte e seis anos. Corpo magro, cabelos louros batendo na cintura. De uma inteligência surpreendente, de uma beleza cativante. Pergunto-me até hoje o que Valéria viu em mim, um tipo qualquer sem graça. Começamos a sair, uma volta no parque, uma ida ao cinema. De tão tolo e babaca que sou, foi ela quem tomou a iniciativa e me beijou. Foi por sua vontade que transamos, um tempo depois. Sentia que ela realmente gostava de mim, mas estava ficando cansada. Eu não acrescentava nada em sua vida, não conseguia alcançar suas expectativas. Então eis que ela me abandona assim como quem se livra de um filhote de gato.

O mais incrível é que não me abalei muito. Sabia que essa hora iria chegar. Voltei a focar no trabalho, e naquela vida medíocre de sempre.

Por razões que nem mesmo sei ao certo, foi demitido. Quase sem notar, fui vendo o banco levar minha casa e eu parar na rua. Vi-me entrando num vício horroroso de álcool. Ia a bar em bar, gastando até os últimos tostões. Pulava de albergue em albergue. Caia no lodo da desgraça, e não fazia nada para me levantar.
Então encontrei Dona Amélia. Uma senhora simpática, de coração enorme, que conseguiu me tirar do vício antes que eu me afundasse de vez. Permitiu que eu morasse no quartinho nos fundos da sua casa, e que trabalhasse em sua farmácia. Passei anos atrás daquele balcão, com um sorriso cada vez maior nos lábios. Fui ganhando a confiança de Dona Amélia. Fui me tornando o filho que ela nunca teve.

Como ela não tinha praticamente nenhuma família, deixou tudo que tinha para mim. O que foi uma surpresa, confesso.

Em um inverno rigoroso, Dona Amélia adoeceu. E foi piorando e piorando até falecer. Morreu lúcida, me dando ordens para que não deixasse seu negócio morrer junto com ela. Ela se foi me chamando de “filho”.
Com o dinheiro que ela me deixou, modernizei a farmácia. Contratei funcionários, abri outro tipo de negócio na mesma rua. Fui ganhando espaço na comunidade, tornando meu nome respeitável. O que não foi difícil. Eram pessoas carentes de atenção e de cuidados, e mantinha um pequeno estoque para doação. Sem perceber, fui entrando na vida daquelas pessoas e transformando o que elas eram.

Cinco anos depois da morte de Dona Amélia, mantinha uma sólida rede de farmácia em vários pontos da cidade. Mas sem perceber, fui mudando o que eu era. Outrora um rapaz tímido e sem iniciativa, agora um homem firme e decidido. As pessoas vinham até mim às dezenas, pedindo ajuda. E eu concedia, como um bom samaritano.

Numa tarde de abril, apressado em chegar em um evento, não vi a criança que atravessava a rua. Apenas ouvi o choque e um grito. As pessoas vinham ver o que era, e se surpreendiam e se enfureciam quando viam que eu tinha atropelado uma criança. Quis explicar que não tive culpa, que não vi. Mas eles estavam cegos de ódio. Percebi que tinha muitos ali que tinha ajudado, em remédios e até em dinheiro. Ainda conseguiram me bater, mas fugi a pé. Olhei pra trás num instante e vi que estava colocando fogo no meu carro.
Não sai mais de casa. Com esse incidente e com algumas mentiras ao meu respeito, as pessoas deixaram de comprar em minhas lojas. Fui falindo, me afundando em dívidas. Voltei a perder tudo novamente.

***


E aqui estou redigindo toda essa história aos sons da população ensandecida na frente da minha casa. Como nos tempos medievais, eles usam tochas e porretes. Eles começaram a jogar essas tochas no telhado. E está pegando fogo. Eu não sei o que fazer. Eu não sei se irei sobreviver. Caso esse pedaço de papel sobreviva, fica registrada a história da minha vida. Não seja um tolo como eu fui. Os bons samaritanos sempre se ferram.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Amsterdã

E então, de um momento para outro, decidiram ir para Amsterdã. Não sabiam como, não sabiam o porquê, mas iriam. Rapidamente foram ao caixa eletrônico, sacaram todo o dinheiro. Pegaram as malas, colocaram o que achavam essencial. Entraram em contato com uma agência de turismo, procurando saber o melhor roteiro. E o mais barato.

Ligaram pros pais, que não conseguiram entender quase nada. Disseram apenas que iriam para Amsterdã e que dentro de uma semana estariam de volta. Os pais não tiveram como proibir. Afinal, eram de maiores e tinham o dinheiro. Pediram para que eles tivessem cuidado e que ligassem todo dia.

Após toda essa burocracia, rumaram para o aeroporto. O voo partiria dali à uma hora. Nem deu tempo de ligar pros amigos. Estavam tão ansiosos que nem disso se lembraram. Eles não haviam parado para pensar nessa tão repentina decisão. Queriam ir para Amsterdã, queriam fazer alguma coisa lá. Não eram adeptos a maconha, não planejavam transar em praça pública. Naquele momento parecia que uma força inexplicável os puxava pra lá. E eles não queriam saber a origem dessa força. Queriam apenas consumá-la.


Mas a caminho do aeroporto, um acidente aconteceu. Um caminhão atingiu em cheio o táxi que estavam. Capotaram no meio da avenida, batendo em outros carros. O taxista morreu na hora, com um pedaço de ferro atravessado no peito. Ela parecia que também estava morta, pois não respondia os chamados desesperados dele. E ele, com a perna quebrada, gritava ao mesmo tempo por ajuda e pela sua amada. Então aos poucos foi perdendo a consciência. Via pessoas do lado de fora tentando ajudar, mas elas pareciam tão distantes. Ele colocou a mão na cabeça, e percebeu que sangrava profusamente. As pessoas notaram isso também e pediam um médico. Ele as olhava com uma cara boba, de como soubesse que as coisas ficariam bem. Fechou os olhos, imaginando a Amsterdã. Os dois iriam para lá. Sim, estavam quase chegando.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Quinta-feira

Era preciso sair. Eles não sabiam pra onde, apenas precisam sair. Sair dali, sair daquela rotina estúpida e suja. O que eles necessitavam era de espaço e descanso, de um momento de paz. E então assim foi, ambos pegaram suas carteiras e saíram naquela noite quente de quinta-feira.

Como a quinta-feira é o dia que antecede o fim de semana, há certo burburinho nos bares e vielas. Eles se enveredaram por elas, e em dado momento se afastaram. Cada um foi para um caminho diferente: Um foi para um bar mais boêmio, culto, onde filósofos de botequins e artistas desconhecidos se encontraram para uns tímidos copos de cerveja. E o outro também foi para um bar, mas este era diferente. Era sujo, não tocava música de letras bonitas e sim de letras vulgares. Ali havia um cheiro eterno de urina e álcool, e de gozo. Aquele cheiro, ele notava, era dele também. E quando ambos estavam bem confortáveis em seus respectivos lugares, uma repentina chuva arrebentou nos céus. E foi lavando a cidade, lavando a impureza dos decadentes e dos cultos. E quando eles dois olharam para o céu, lembraram um do outro. Perdidos no coração da cidade vazia.

Quando a quinta virou sexta, aqueles dois estavam no auge de suas embriaguezes etéreas. O primeiro estava numa conversa um tanto confusa sobre a dialética de Hegel. O segundo estava quase surtando, dançando freneticamente com uma qualquer. Cada um entrosado em seu respectivo objetivo. Mas a chuva não parava. Talvez a função daquela chuva fosse lembra-los que tinham um ao outro. E nem mesmo o que aqueles bares ofereciam podiam separá-los. 


Quatro horas da manhã baixou, e o sol despontava pra lá do mar. Os dois estavam fatigados. Voltaram dos seus nichos, que ainda pareciam resistir ao iminente sol. Apenas pensavam em sua cama, pensava um no outro. E quando finalmente se viram, sorriram. Felizes demais. Após um abraço desajeitado, subiram apressados. E nem mesmo o cansaço e a embriaguez o impediram de fazerem amor. Amor, eles fizeram amor. Pois não tinham feito nada de grave durante aquela noite de quinta-feira. E depois ambos dormiram um no braço do outro, enquanto o sol começava a surgir. Era sexta-feira agora. Mais um dia começava. 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Inesquecível

Ela era senhora da noite, dama, duquesa. Seus lábios carnudos beijavam um cigarro, e volta e meia liberavam uma fumaça que se perdia nos confins daquela noite de sábado. Um rapaz, tímido por sinal, estavam do outro lado do bar. Mas ela sabia esperar o momento certo. Pediu mais uma cerveja e pôs a observar o moço. Ele, com uma ice, olhava com cautela pros lados. Ela sorriu. Ela também já fora assim. Mas isso foi há muito tempo atrás, quando ainda não havia provado o gosto amargo da desilusão.

Se as horas passavam, ambos não saberiam dizer. Estavam concentrados demais em seus “afazeres”. Ela, que tinha o apelido de Kenya (e não sabia como explicar a origem), mantenha os olhos fixos no rapaz. Até que determinado momento ele notou que estava sendo observado. Ficou de certa forma petrificado, como que se tivesse levado um choque. E Kenya também ficou chocada, pois ele lembrava o outro. O outro, ele. Felipe. O maldito Felipe.

Por um momento Kenya se sentiu tonta, e quase derrubou o copo. Parecia que o bar começava a movimentar-se num borrão, como se Cronos estivesse fazendo uma brincadeira perversa. Ela não podia acreditar. O moço era igual ao Felipe, até nos detalhes que só ela tinha percebido. Não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo, e rapidamente pediu a conta ao garçom. Tinha que embora o mais rápido possível. O sósia de Felipe continua estático. Parecia que Kenya lhe lembrava alguém. Quando enfim conseguiu sair dali, ela desabou em lágrimas. Esforçava-se, mas não conseguia esquecê-lo. Felipe estava entranhado nela, seu cheiro estava impregnado nela. Ainda tinha algumas roupas suas no guarda-roupa de Kenya. E ela teria que assumir atitudes drásticas.


As meninas até tentaram perguntar o que havia acontecido, mas não obtiveram resultado. Kenya foi até a área de serviço, com todas as roupas dele, e as colocou na pia. E tacou fogo. As meninas observavam atônitas, esperando o pior. E Kenya, que tinha o rosto rubro por causa das chamas, fixava seu olhar para o horizonte. As estrelas decadentes, o céu tosco, a cidade vazia. Mas certo tempo atrás aquilo tudo foram deles. Eles, acima de qualquer coisa, foram um casal feliz. Já fazia um ano, e ela não superava. Pois aquilo era insuperável. Aquilo era imortal. E quando as chamas aquietaram-se, e as meninas a levaram pro quarto, Kenya mantinha um rosto abatido, mas ao mesmo tempo sereno. O mar também fora deles. Hoje não mais. Nem ela era de si mesma. Ela era dele. E ele era seu. Para sempre. 

Saber

Sempre soube daquilo. Sempre. Não houve um momento onde se esquecesse do que era ou aquilo que representava. Aquilo crescia no interior da alma, a espera de um melhor momento para se mostrar. Mas ele sabia, ah sabia... Não podia evitar os olhares discretos, os pensamentos impuros que surgiam quando passavam os rapazes. Ele sempre soube, sempre. Mas nunca tivera a coragem de assumir a existência daquilo.

Então, numa úmida tarde de março, ele não pode mais se conter. Pegou o telefone e ligou para um amigo, perguntando se ele podia vir a sua casa. O amigo disse que podia, desconfiado com tamanha pressa que ele apresentava. Chegou lá meia hora depois, para ser recebido com um beijo repentino. Ele sabia – sempre soubera – que era bissexual e de que aquele amigo também era. Atracavam-se no sofá, aos gemidos e aos sussurros. Conseguiu convencer o amigo. Tiraram as vestes que ainda restavam, e amaram-se ainda mais. Seu amigo era um ótimo passivo. E ele também era. Os dois eram perfeitos um para o outro.

Findo o êxtase, o amigo beijou seu rosto e disse que o amava muito. Disse que queria namorar com ele, que não se importava com o que os outros iriam dizer. Mas ele não queria, pois sabia que as pessoas não aceitariam. Seria melhor se apenas permanecessem daquele jeito, com sexo casual e em datas dispersas. O amigo não aceitava. Deu um último beijo, vestiu as roupas e foi embora.


Ele permaneceu no sofá, deitado e nu. Olhava fixamente para o teto, talvez desejando a reposta. Sabia – ele sempre soubera – que a resposta morava nele, lá no interior da alma. Uma parte dele queria dizer sim, que aceitava o convite de namoro. Outra queria dizer não, que aquilo era perigoso. Ele agora não sabia de nada. Não sabia que caminho trilhar. Não sabia nada, enfim.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Flores

Ela era tão correta e tão bonita, com seus princípios e sua atitude. Nada parecia abalá-la, nem mesmo os dias ruins. Sempre esbanjava alegria e falava com todos, do menino ao velho. Todos gostavam dela. No verão, imitava Gabriela e colocava uma flor na orelha. Felicidade não lhe faltava.

Mas eis que de repente ela parou de sorrir. Passava na rua, cabisbaixa, nem sequer olhando pros vizinhos. Estes estranharam, e ficavam frustrados quando ela não respondia nem mesmo o “bom dia”. Ela não mais usava a flor, ela não mais sorria, ela não mais espalhava alegria.

Enforcada com o lençol foi assim que sua mãe a encontrou. A vizinhança em peso compareceu ao seu velório. Deus, que parecia sofrer também, mandou uma chuva forte e escureceu os céus. As flores pareciam ter murchado. Os pássaros não cantaram naquele dia. Muito se especulou o motivo de sua morte. Ninguém compreendia, e talvez nem quisessem compreender.


Então sua mãe achou uma carta, com a caligrafia da filha. Nela estava escrito o motivo do suicídio. Um amor não correspondido. A mãe, com os olhos vermelhos de tanto chorar, olhou para janela. Num vaso, havia uma flor.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ruído Amargo

00h22: Você tá aí?
00h23: Tô.
00h24: Você quer conversar?
00h27: Porque eu iria querer conversar contigo, depois de tudo que você me fez?
00h28: Porque eu não fiz nada! É mentira deles!
00h30: Olha, não vamos discutir de novo. Vamos ficar de boa, cada um na sua.
00h31: Mas eu te amo...
00h32: Ama nada... A única coisa que você ama é você mesmo. Sempre preocupado nos seus problemas mesquinhos, suas besteiras de adolescente rejeitado. Eu quero que você saia da minha vida, e para sempre.
~visualizado ás 00h33~
00h35: Então tá.

01h00: Por mim eu você permaneceria na minha vida, mas você que se expulsa.
01h01: Acho que não quero ouvir mais nada, me perdoe. Melhor a gente se afastar.
01h03: Acho melhor mesmo.
01h05: Então adeus
01h07: Adeus

01h37: Sempre imaginei quando iria te beijar.
01h40: É, eu também.


Ela e os Fragmentos

Ela tinha sonhos. Confusos, tensos, desconfortáveis. Ela não sabia o que estava acontecendo. Apenas queria que parasse. Ela, tão sentimental. Ela, tão leve. Ela, tão calma. Talvez aqueles sonhos tivessem algum significado, mas eles eram escuros. Tão escuros...
***
Uma grande marca se fez no céu. Profunda, forte, intensa. Ela não sabia decifrá-lo, como seus sonhos. Parecia que tudo tinha que ser complicado pra ela. Parecia que Deus não lhe permitia um momento de paz. Ela queria, acima de tudo, amor. Mas ela encontrava amor? Não. Apenas se interessava por coisas e pessoas impossíveis. Mas ela era tão tola, tão sentimental. Os sentimentos seriam sua morte.
***
Ela gostava dele. Mas ele gostava dela? Ela achava que não. Talvez estivesse errada. Terrivelmente errada...
***
O som dos pássaros não a deixa dormir. Ela sonhava, agora já não dormia. Queria dormir. Queria apagar, nem que fosse por alguns instantes sequer, aquelas marcas. Mas era tão difícil, tão intrínseco a sua alma, que ela estava a ponto de explodir.
***
Por um momento, ela achou que tinha visto uma luz no fim do túnel. Via ele no final. Via ele no seu final. Ela não teria final sem ele.
***
Seu instinto materno afasta as pessoas, ela sabia. Mas aquilo era irrefreável, impossível de ser controlado. Eles iam embora, e ela não fazia nada...
***
Acho que ela não sabia quem era, mas sabia do que não gostava. Feliz aniversário pra ela.
Feliz aniversário pra ela...
Aniversário pra ela...
Pra ela...
Ela...


Admita. Se entregue. Se jogue. Mas você não pode perder tempo, pois você não tem mais tempo pra perder. Mas ele é tão...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Dor

Ele já não sabia mais distinguir o que era sonho e o que era realidade. Apenas sentia o outro. O outro a lhe encher, a lhe complementar, a lhe dizer coisas boas. O outro, e só ele, tinha um poder incrível de persuasão que o deixava estático. O outro se movia com fervor dentro dele, em prazerosos movimentos.

Mas então um dia tudo acabou. O outro desapareceu sem deixar rastros, ou o telefone. E ele padeceu de uma dor surda e cega, como que o seu coração tivesse se retraído para depois explodir. O mundo perdeu a cor, a vida perdeu o sentido e ele se sentiu tonto. A existência a partir dali lhe parecia um borrão, algo indecifrável demais. Ele pôs a caminhar em volta de si mesmo com dificuldade. Respirar era difícil. Viver já lhe era supérfluo. E ele começou a procurar meios de tirar a vida.

O suicídio passou a habitar sua mente, como uma irrecusável oferta. Para o seu desespero, o outro ainda estava ali. Nos livros, nas cadeiras, na sua cama, no seu corpo, no seu eu. Ele percebeu que o outro estava entranhado nele, como duas almas fundidas. O outro, mais que a noção de Deus, lhe explicava o quê de existir. O outro era ele, e ele pensara que ele era o outro.


E então após um dia de intensa agonia sentimental, tomou a tão adiada decisão. Sentou no peitoril da janela, com 20 andares abaixo de pura melancolia urbana. As luzes rasgavam a noite como se esta fosse um fino véu. As estrelas estavam escondidas atrás de enjoadas nuvens. A cidade movimentava-se com o burburinho costumeiro. Ninguém sentiria sua falta. A dor, a dor da perda, era grande demais. E ele já não podia suportar. Atirou-se, com o vento a beijar-lhe a face com ardor. O chão se aproximava assustadoramente, mas ele estava calmo. O outro o esperava. Ele não sabia onde, mas já iria descobrir. Quando ele atingiu o solo, num baque que mais pareceu um tiro, mantinha um sorriso de satisfação. Os curiosos começaram a surgir, e os gritinhos de moças puras e mexericos de velhas fofoqueiras, iriam engolir a dor dele. Ele seria apenas mais uma história de um ser de coração partido, naquela velha cidade. 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

As Coisas Boas da Vida

Eu não tenho respostas. Alias, não sei se tive algum dia. Apenas perguntas que se amontoam no emaranhado que chamo de consciência. Acendo um cigarro, o melhor que posso comprar. Apartamento decrépito, mas eu gosto dele. Aluguei-o quando saí da casa dos meus pais, aos dezoito. Pouco tempo depois o comprei. Ele me faz sentir independente, sei lá. Gosto dele. Livros empilhados num canto, cinzas por toda parte. Um empreguinho de merda, uma vida medíocre. Sim, tudo isso é uma bosta.

Não tenho vontade de sair, e muito menos dinheiro. Então vou pra cama, ler talvez um Sabino ou Fernando Abreu. Eles me fazem bem, as melhores companhias que tenho. Foram eles, nos meus dezesseis anos, que me deram a brilhante ideia de ir morar sozinho. Bom, é legal. Mas há muitos contras. Enfim, não falarei disso. Mas eu não sei do que eu quero falar. Angélica? Não, não é um assunto agradável. O que ela fez? Apenas partiu meu coração. Um coração partido mil vezes.

Éramos apenas conhecidos, um oi rápido na rua. Até que ela passou a frequentar a biblioteca que eu trabalhava. Conversa vai, conversa vem e chamo-a pra sair. Ela aceita e acontece toda aquela história bonita dos filmes. Mas eis que ela vai e me trai, por um cara ligeiramente inferior a mim. Não imaginava que ela chegaria a tanto, mas... Enfim. Não me descabelei ou fui tomar satisfações. Acabei e voltei a tocar-me violentamente por debaixo dos lençóis. E agora, três meses depois, tudo pareceu um sonho. Encontrei-a algumas vezes. Falamo-nos normalmente, sobre algum livro novo e tal. O que mais me preocupa, acredite, é que não senti ou sinto nenhuma tristeza ou decepção. Apenas aceitei os fatos e segui com a vida. Sou muito bom nisso, pelo visto.

As perguntas sem respostas das quais me refiro são sobre outros assuntos. A vida, o universo e tudo mais. E sobre Deus, sociedade, pessoas. Ando ocupando minha mente com esse tipo de coisa, pois minha vida anda tão monótona que não me resta escolha. São questões que nem os grandes filósofos e nem as religiões conseguem responder por completo. Porque eu responderia? Porque eu saberia? Eu, um cara com um empreguinho de merda e uma vida medíocre.


Meu telefone toca. É uma guria interessante que conheci na noite anterior. Ela quer marcar um encontro. Aceito obedientemente. Não tenho nada melhor pra fazer. O jeito é pisar nos cacos do coração, ou aquilo que ainda me resta, e tentar a sorte de novo. Que a vida é cheia de escolhas isso todo mundo sabe. O que a maioria das pessoas desconhece é que as dúvidas e os erros são mais importantes. E que as perguntas são mais importantes que as respostas. E enquanto houver mistérios e coisas interessantes, mulheres afim de relacionamento, aqui estarei eu. Pois uma vida sem essas coisas é uma vida que não vale a pena ser vivida.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Sol se Despedaça

Não havia mais flores. Não tinha mais sorrisos. Lígia era apenas um punhado de mágoas e dores incuráveis. O seu já bagunçado apartamento exalava estranhos odores. As plantas estavam entregues a sorte da natureza, seu gato há muito aprendera a caçar a própria comida. Pois Lígia não agia, não se movimentava. Lígia nem vivia mais.

Ela queria ouvir as batidas do seu coração, aqueles toques ritmados tão conhecidos. Apenas ouvia sonos descompassados, como se ele tivesse desaprendido a bater e tentava pegar o jeito de forma titubeante. Lígia olhou pela janela, mas não via nada por causa das negras cortinas. Num grande esforço, ergue-se do chão e abriu as persianas. Seu primeiro impulso foi proteger os olhos da forte luz que emanava dos céus. Com a vista se acostumando a claridade, percebeu o quão imundo estava seu apartamento. Ela não se importou. Observou a cidade. Recife tirava a sesta revestida de um forte sol de fevereiro. O límpido céu permitia que o sol despejasse seus raios pelos quatro cantos da cidade. A Avenida Conde da Boa Vista parecia cintilar diante de tanto calor. O rio Capibaribe era um tapete de cristais e diamantes. Com exceção das avenidas, as ruas transversais estavam praticamente desertas. Lígia bocejou, perguntando-se quantas horas tinha permanecido incauta em seu abrigo sentimental. Foi a cozinha procurar algo decente pra comer, mas só tinha biscoitos velhos e uma garrafa de suco. Suspirou. Tinha esquecido de fazer compras.

Na verdade não tinha esquecido. Apenas não teve vontade. Não tinha vontade, não tinha mais anseios, não tinha mais desejos... Tudo aquilo ele levara. Tudo aquilo se fora.

Depois de haver comido, fumou um cigarro pra tentar relaxar. Permitiu que o sol invadisse sua casa, expulsando a escuridão pro seu lugar de direito e fazendo visíveis as minúsculas partículas de poeira. Findo o cigarro, decidiu limpar tudo aquilo. Jogou o lixo fora, varreu e passou pano no piso, lavou os pratos e os banheiros, colocou a comida do gato, tentou reviver as plantas. Deixou seu quarto por último. Arrumou a cama, tirou toda sujeira. Então Lígia decidiu mexer em seu guarda-roupa. Era a primeira vez que ela fazia aquilo desde a ida dele. Sentiu-se repentinamente atordoada, recebendo enfim o choque das informações. Pôs então a chorar alto, não se importando com os vizinhos. Porque diabos ele tinha partido? Ela não tinha sido boa o suficiente, dada o suficiente? O coração apertava, o estômago revirava, e ela sentia nojo de si mesma. Fora tola em apaixonar-se por tamanho patife arrogante, fora estúpida em acreditar que daquela vez seria diferente. Mas não fora e nunca seria diferente. No fundo, mas lá no fundo, o amor é previsível. Sabemos que iremos sofrer por ele, sabemos que não teremos recompensas imediatas, sabemos que terminaremos na merda. Mas desistimos? Cogitamos em tentar mudar? Não. Apenas aceitamos isso, pois não temos força contra o amor. Não temos força com nós mesmos.

Lígia queria morrer. Seria tão bom que sua vida fosse sugada por algum ceifador sinistro. Ela queria isso, almejava isso. Deus era brincalhão, não lhe permitia um fim digno. Lígia odiava a si mesma com tanta intensidade, que se cortava com frequência. Aquilo não era sinal de alívio, esperança, tristeza ou qualquer coisa parecida. Aquilo era ódio, puro ódio.


Quando percebeu que a janela do seu quarto ainda estava bloqueada, rapidamente deixou que o sol fizesse seu trabalho. E quando este começou sua dança luminosa, Lígia pode percebeu uma coisa. Pequeninas formas enérgicas de vida saltavam por todo o aposento. Tudo parecia uma coreografia bem ensaiada. Lígia não podia, não queria entender o que era aquilo. Depois de dias, sorriu. Pouco tempo depois também bailava, enfeitiçada pela inebriante chegada da felicidade e do alívio em seu coração. Quando compreendeu que tudo aquilo era ilusão, que tudo o que sentia era apenas uma miragem, concluiu que era inútil sofrer por um amor tão supérfluo. Mas ela estava cansada de pensar naquilo. Rodopiou mais uma vez, e continuou a dançar com aqueles estranhos seres. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O Fim da Ortodoxia

Tão previsível não? Eu sou previsível, eu sei. Mas você é, e não sabe o quanto. Com esse seu jeitinho recatado, dando uma de “cristã fiel” e evangelizando as almas perdidas. Irmã, você nem salvou a sua alma, como você quer salvar as dos outros? Isso só torna você patética. Por Deus, você é muito patética.

Queria um cigarro agora. Acender, tragar e assoprar. Já experimentou? É bom. Ora... Não me venha agora com esse blá blá blá infernal sobre câncer de pulmão e o caralho a quatro. Se eu fumo uma vez, me alerta e me repreende. Se eu bebo um copo de cerveja, bate nas minhas costas e até me incentiva a beber mais. Ah não... Não vai me dizer que você nunca bebeu? Uma taça de espumante no réveillon, ou uma de vinho na ceia? Jesus, como você é careta.

Por falar em Deus, acho que está na hora de você ir para o culto. Não é esse o motivo de não dar antes do casamento? Deus, Igreja, compromisso, purificação, pecado... Isso é só uma ladainha infernal vinda de pessoas que não sabem fazer sexo e pior, não sabem ser felizes. Dizem que é a Bíblia que afirma isso. E eu digo que são os infelizes e impotentes cavalheiros e damas das cúpulas detestáveis das Igrejas que afirmam isso.


É sério, vai embora. Não aguento mais olhar pra essa sua cara de enjoo. As coisas que eu queria dizer eu já disse. Pode ir, mas vai e não volta. Fica lá na sua igrejinha, na sua vida de merda e mediocridade. Creio que você ganha mais. Pois a única coisa que você ganhará por aqui são pulmões fodidos, fígado estragado, merdas feitas em momentos de embriaguez, e decepções e arrependimentos junto com a ressaca. E além do mais, uma vida de ignorância e fé cega num Deus de existência duvidosa me parece ser mais segura. Ou não.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A Onipresente

Agora você vai embora e eu não sei o que fazer,
Ninguém me explicou na escola, ninguém vai me responder.

Educação Sentimental – Kid Abelha


Ventos criam uivos sinistros nas frestas, mas não me importo. A chuva começa a cair, molhando a cortina, mas também não me importo. O que me importa não se importa comigo. Ela foi embora e deixou um pedaço de si mesma na casa. Seu perfume está impregnado em tudo. Algumas roupas ainda estavam ali, para minha tortura. Pegava-me cheirando-as, desejando intensamente que sua dona ali estivesse. O que realmente tinha ocasionado sua ida não estava definido e talvez nunca seja. Aonde quer que eu olhe, nos quadros, nos retratos, na cozinha, no banheiro, no quarto, a via, exalando sua beleza para quem quisesse ver e sentir.

Com uma xícara de café como companhia, volto a lembrar de momentos alegres desfrutados ao seu lado. A primeira vez que saímos juntos, nosso primeiro beijo, nossa primeira noite... Tudo voltava num confuso emaranhado, como uma onda forte que bate e derruba.

Quando percebi, lágrimas quentes brotavam-me dos olhos. E elas foram caindo no café. Comecei a observar seu trajeto, e logo em seguida bebi o líquido. Minhas lágrimas amargaram a bebida, deixando-a intragável. Ou talvez seja meu próprio paladar, que talvez também tenha me abandonado.


Segui-me então para o quarto, sentando próximo a janela. A chuva já estava forte, batendo com força no vidro. Não podia ver a rua por completo, pois a chuva não deixava. E era assim que eu estava: embaçado, cego. Já não a tinha e não sabia o que ia fazer. Meu Deus, como a fui perder? Nosso amor, tão forte e inabalável, tinha acabado por motivos fúteis. Esfreguei o rosto com as mãos, a fim de espantar aquele pensamento. Impossível. A sua imagem estava fixada em minha mente. Podia sentir seu hálito, seu corpo em atrito com o meu, seu rosto amassado de manhã, um sorriso estampado. Voltei a chorar, dessa vez com mais intensidade. E de repente gritei, gritei até minha voz fraquejar. Gritei desesperadamente seu nome, implorando para que voltasse. Nada aconteceu. Então enxuguei as lágrimas e voltei a observar a chuva, que impiedosa batia em minha janela. 

Degraus Invisíveis

Claro como o dia, o desejo surge. E ele vai se apoderando da minha consciência de tal forma, que é quase impossível contê-lo. Fico furioso com isso. Detesto ser manipulado, independente do que seja. Mas parece que o desejo (que, acredite, parece ter vida própria) não quer saber o que acho. Logo, logo ele ia querer ser posto em prática e isso acarretaria riscos. Tento inutilmente lutar contra ele, só que ela é mais forte do que eu.

Subo o lance de escadas devagar. Dezoito anos e pareço ter quarenta. Com meu apartamento tão longe e eu tão cansado, me sento na metade do percurso. Tateio na bolsa o maço de cigarros, mas não encontro. Tombei com um pacote de biscoitos pela metade, que deveria ter sido meu almoço. Agora que percebo que estou com uma fome imensa. Então o desejo volta com força, como um tiro disparado de lugar algum. Apodera-se de mim com tamanha fúria, que sinceramente penso em estar sendo possuído ou algo do tipo. O biscoito rapidamente acabou, mas estava com preguiça de levantar. Finalmente encontro o maço. A fumaça sobe pelo ar, criando uma atmosfera estranha naquela penumbra de começo de noite.

Mas o desejo... Esse não tarda em atormentar. Preparava-me para retomar a subida, quando ele volta a dar o ar de sua graça. Quero resistir, quero lutar, mas é sua força é incomparável.

Chego ao apartamento, cansado e enfadado daquilo. Troco de roupa, tomo um banho, janto. Essas coisas momentaneamente ocupam minha mente, mas lá vem ele de novo. Vencido, pego o telefone. Então a partir deste momento eu não fui eu. Apenas lembro ligar pra ele, marco um encontro. Lembro-me de colocar uma roupa com desleixo, e sair rua afora. Lembro-me de vê-lo, tomar uma cerveja, conversar futilidades. Lembro-me da sua mão ousada pela minha coxa, e a minha pela dele. Do seu pênis ereto na calça apertada, e o meu também. Lembro-me de termos ido a algum lugar escuro, e lá consumar o ato. Lembro-me de seu chamado insistente para ir a sua casa. Depois disso, são apenas borrões.


Voltei a ser eu quando abria a porta do apartamento, com os primeiros raios de sol a entrar pelas janelas e frestas. Um banho rápido e me jogo na cama. Não tinha espelho próximo, mas eu sentia que via a mim mesmo ao meu lado na cama. Enfim o desejo estava consumado. No fundo, gostava daquela embriaguez. Do lapso significativo da memória, aonde assumo uma personalidade desconhecida. Ou talvez seja o meu eu mais íntimo em seu momento de liberdade. Pego no sono. Sonhei que subia lances e mais lances de escada. Mas não via essas escadas. Só havia uma luz difusa no topo. Eu não me lembro de ter chegado lá, pois acordei de repente. Eram mais de meio-dia, e sentia que o desejo não tardaria em voltar.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Apreciadores de Morangos

Finalmente eu tinha paz. Mas era uma paz estranha, quase que aterrorizante. Depois de tantas brigas, umas tolas outras não, alcançávamos a tranquilidade. Mas é tudo tão estranho... Podemos nos gabar da liberdade que existia no nosso relacionamento, sim. Só que incrivelmente a liberdade nos pareceu sufocadora. Ou melhor, aquilo que vivíamos era sufocador.

Quando eu te vi fechar a porta, tive a impressão de que as coisas ficariam bem. Notava que enfim estaríamos felizes, verdadeiramente. Fui à janela, vi você apressada indo para o metrô. A cidade te engolia, como uma boca que devora impiedosamente morangos. Alias, são morangos que me nutrem nestes dias. Morangos puros, morangos em leite condensado. Não sei se faz mal, mas sinceramente não me importo.

Tolamente acredito seja você quando alguém bate na porta. Espero seu retorno, pois tenho a certeza que você voltará. Fique ciente de que troquei muitas coisas, principalmente as convicções. E quando você bater a porta meu bem, estarei tão farto de morangos que nem posso imaginar minha reação ao te ver com um pacote deles na mão. Morango era nossa fruta preferida. Ou é?


Viu? Sabia que você voltaria. Lamento, não posso lhe dar mais atenção ou amor. Quer um café? Chá? Morangos? Ou apenas aquelas velhas hipocrisias de sempre? Perdoe-me meu bem, eu sei o que ofereço é medíocre. Mas não tenho coisa melhor. Ora, já vai? Nem vai ficar para o cafezinho? Pena. Pega ali minha agenda. Vou te dar um número. Ligue, e talvez a pessoa que te atenda seja mais interessante do que eu. Talvez te agrade mais, até talvez tenha outra fruta preferida. Talvez não. E aí você volta. Veremos se terei condições de te amar novamente. Qualquer coisa, você pode me encontrar na seção de frutas do supermercado. Eu serei o cara apreciando morangos.

Pintura de Pessoas Felizes

A cortina não deixava entrar a luz do sol no quarto. Caio estava deitado havia horas, sem chegar a nenhuma conclusão sobre como resolver sua vida. Suas desilusões amorosas tinham massacrado tanto seu coração, que Caio passava não sentir nenhum sentimento ligado ao amor ou a afeição. Máculas, borrões, manchas, cortes... Sua alma parecia um retalho, um pano velho, que de costurado tantas e tantas vezes era impossível de dizer qual era sua forma original. Caio vagarosamente se levantou e foi espiar pela janela. As pessoas caminhavam apressadas, ocupadas demais com suas vidas, ignorantes aos assuntos sentimentais. O sol fazia seu trajeto ao crepúsculo, criando um clima agradável nas ruas arborizadas e nas praças verdejantes. Animou-se com a ideia, e vestiu-se para uma caminhada.

Arrependeu-se nos primeiros dez minutos. Todas aquelas pessoas pareciam felizes demais para o seu gosto. Talvez estivessem fingindo, talvez não. O que importa é que elas estavam sorrindo, brincando como se a vida não além fosse de felicidade e sorrisos bobos.

- Mas estão certas... – murmurou Caio – Eu devia estar sorrindo ao invés de chorando.

Quando percebeu que estava falando consigo mesmo, sorriu pela primeira vez em dias. Estou ficando louco. Maldita fora a hora em que deixou que tais problemas tomassem conta de sua vida. Fora fraco, estúpido, incapaz de lidar com as mais banais dificuldades. Mas ele via o lado positivo. Tinha amadurecido bastante nesse meio tempo, pensando em coisas nunca antes cogitadas. Era surpreendente até. Nunca fora uma pessoa desinformada, pelo contrário. Gostava de ler e de saber sobre diversas coisas. Mas era inegável que esse seu dilema o estava transformando em um novo homem. Homem esse capaz de novos desafios e tristezas, capaz de ter controle suficiente sobre seus sentimentos.


Caio se levantou do banco que estava sentado e foi comprar uma pipoca. Há tempos não comia uma pipoca de praça. Não sabia se foi a pipoca ou se foi alguma outra coisa, mas algo aconteceu. Caio voltou a notar a felicidade daquelas pessoas. Pássaros assobiavam nos seus poleiros. Casais namoravam abaixo desses poleiros, curtindo a companhia um do outro. Mamães levavam seus filhos para uma caminhada, sorrindo toda vez que uma das crianças apontava extasiada para alguma coisa perguntando o que era. Até no sorriso torto do pipoqueiro havia beleza. Caio percebeu que também estava feliz, seus problemas eram irrelevantes agora. A impressão que tinha era que aquela paisagem era uma pintura, e uma pintura digna de ser apreciada com todo o carinho. Voltou a se sentar, para poder comer sua pipoca com todo o conforto e com toda a felicidade do mundo. Sabia que seus problemas não se dissipariam com facilidade. Mas realmente não interessava agora. Ele apenas queria fazer parte daquela pintura de pessoas felizes, intocada na selva de tristeza que era a sociedade.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Tinta Fresca

“Ah meu amor... Como eu queria te ter agora nos meus braços. Acariciar estes teus cabelos negros como a noite, afagar essa tua pele morena. A noite chega e a minha tortura também. Como poderei eu viver longe da tua presença? Que sentido haverá na minha existência sem ti?” 

Ele repousou a caneta próxima ao caderno. A tinta fresca brilhava sob a forte luz da lâmpada. Encostou as mãos no papel, como se quisesse sentir as palavras que há pouco escrevera.  Cada letra era a marca de seu sofrimento. Pobre poeta... Vivia de sua fértil imaginação. Sua amada talvez não lesse aquele pedaço de infortúnio, mas não importava. Olhou novamente paras as palavras, agora secas, e voltou a escrever:

“Não haveria maior deleite se tu estivesses em meu lado, como minha esposa.”

Parou. E de repente, pôs a chorar. Com violência arremessou o caderno pra longe. De nada serviria aquilo. Nunca teria seu amor. Então foi na cômoda, pegar sua arma. Voltou a se sentar, e lentamente colocou o revólver embaixo do seu queixo. Era isso, sua patética vida terminaria assim. Olhou pra lua, que já estava em seu ápice. Ela sempre fora sua única companheira, nunca o tinha desamparado. Tentou esboçar um sorriso, mas estava infeliz demais pra isso. Olhou mais uma vez para o caderno, para o poema. Ele fora tolo em acreditar que ela lhe amaria algum dia. Escrevera pra ela, somente ela, e agora morreria sem ver o desejo do seu coração se cumprir. Voltou a chorar, dessa vez mais calmamente. Observou a arma que brilhava sinistramente a luz do luar. Fechou os olhos, e puxou o gatilho.

Naquele mesma noite, uma moça morena e de cabelos negros também se mataria. Os mais íntimos diriam que a causa foi um amor não correspondido.



Absalão

A tarde arrastava-se lentamente ao clima do mês de agosto. Cícero estava sentado com as pernas cruzadas no chão do seu apartamento, fumando um cigarro. Olhava a paisagem, manchada pelas chaminés das fábricas. Manchado também estava seu pulmão. Fumava muito ultimamente, e já nem ligava. Mal bebia, pois não tinha com quem beber. Ao contrário do cigarro, acreditava que tinha que se dividir o álcool. Seu gato, chamado Absalão, se esfregou em suas pernas. Cícero sorriu, e começou a acariciar o bicho. Ele desejava em alguns momentos ser Absalão. Não ter responsabilidades nenhuma, ter liberdade de subir nos telhados. A única preocupação de Absalão talvez fosse os ratos e os cães. Ou não. Talvez o gato tivesse uma vida também, de amargura igual ao seu dono. Na verdade Cícero não acreditava ser realmente dono de Absalão, dada a audácia e a liberdade que o animal parecia emanar.

Absalão viu um rato atravessando a sala e pôs a persegui-lo. Cícero se levantou, com o cigarro em punho, e foi à janela. O sol há muito se escondera por detrás dos prédios. Cícero não mais podia aguentar. Foi se inclinando, e então colocou uma perna para fora. Morava no décimo andar, uma queda fatal. Jogou a outra perna e sentou-se. Terminaria seu cigarro ali, á beira de sua morte. Voltou a se lembrar dos problemas, das dividas, dos amores. Havia deixado o saco de ração aberto na cozinha, Absalão não morreria de fome.

Enfim concluiu o cigarro. Jogou a bituca. Viu-a desaparecer por entre a escuridão da então noite que chegava. Olhou dentro do apartamento, procurando Absalão. Não o achou. Devia estar aproveitando o rato. Gato esperto aquele. Talvez Absalão seja a única coisa boa que acontecera na vida de Cícero. Lágrimas caíam pelas bochechas, indo perder-se na vastidão que abaixo estava. Mais uma vez voltou a procurar o gato, não encontrando. Não podia mais esperar. Olhou para os prédios, para o céu, para o fim do dia. Então Cícero se jogou, de braços abertos, a fim de agarrar sua morte. Descia rápido, sentia o vento lamber sua face. Fechou os olhos, e esperou o fim.

Cícero não percebera, mas ocorria um evento em sua rua aonde havia várias tendas grandes de plástico. Caiu em cima de uma delas. A armação aguentou por um curto período de tempo, o suficiente para amortecer a queda. Então cedeu, caindo sobre não sei quê que havia embaixo. Cícero bateu a cabeça em algo, e por um momento viu tudo mudar, girar e piscar. Antes de perder a consciência podia jurar que Absalão estava na rua, próximo ao seu dono, com uma expressão de quem se pergunta o porquê de se matar por motivos tão fúteis.


sábado, 5 de outubro de 2013

Visão

A voz de Renato preenche o quarto. Ele é a minha única companhia agora, a melhor. Ele cantava quando você cruzou aquela porta com a frase nos lábios: ”Não volto nunca mais. Adeus.”. Até parece que você ainda está ali, congelada no tempo, a repetir essa maldita frase. Alias, você que é maldita. Eu acreditei, na minha tola ingenuidade, que você me amava. Fazíamos tantos planos, tínhamos tantas ideias... Doce engano.

“Lembra que o plano erámos ficarmos bem”. Renato nos lembra. Mas não ficamos bem, e temo que nunca fiquemos bem. E isso é escolha sua. Como pode ser tão vaca, tão maldosa? Por Deus, estávamos indo tão bem. Adeus. Sua voz não sai da minha cabeça, não para de repetir. A visão de você indo embora, de malas na mão, vai me atormentar por muito tempo.

Eu queria sair, mas estou sem dinheiro. E todos meus amigos estão procurando emprego. Eu queria me divertir, esquecer-se dessa noite, ter um lugar legal pra ir. Mas não consigo pensar em outra coisa. Não tenho mais cigarros, não tenho mais bebidas, só a voz de Renato a repetir meu lamento. A lista acaba e eu reinicio. É só o que me resta.

Até pensaria duas vezes se você decidisse ficar. Esqueceria nossa fútil discussão, e voltaríamos a ser como éramos antes.  Mas você deixou clara a sua decisão. E eu devo respeitá-la. Na estante, a discografia da Legião completa. Da rebeldia a depressão. O que Renato faria? O que Renato diria? Sua voz, cantando as infelicidades de V, me parece dar a resposta. Eu que sou burro em não perceber. Mas aposto que se você estivesse aqui, saberia me responder. Alias, se você estivesse aqui, nada disso estaria acontecendo. Olho para o céu, nos tons carmesins do crepúsculo, e continuo sem entender. Renato parece insistir em me dar a reposta. Então finalmente eu percebo. Mas também percebo que é terrivelmente tarde pra qualquer coisa.


Pássaros em Queda

“Beije-me, beije-me como se fosse a última vez”
Ingrid Bergman, no filme Casablanca

Não sabíamos definir o que éramos. Na verdade, nem queríamos isso. Estava tão bom assim, sem nada certo ou verdadeiro. Deixava-nos levar pelas ondas do tempo, não se preocupando onde iriamos desaguar.
O conforto era mútuo, tristeza não havia. Víamo-nos quando convinha, beijava-nos quando era a hora, transávamos quando era adequado.

A liberdade daquilo era assustadora. Ficávamos com outras pessoas, e algumas vezes tentávamos iniciar um relacionamento com elas. Mas não adiantava. Estávamos embriagados um pelo outro, mesmo que negássemos isso. Jogávamos um tipo de jogo, desconhecido por muitos, no qual nenhum dos dois lados perdia. Só lucrava, só ganhava, e isso era incrível.

Ríamos por qualquer besteira, nos divertíamos juntos, almoçava na casa do outro como mero amigo. Ninguém sabia daquilo, nem mesmo os amigos mais íntimos, que pelo correto deveriam saber.
Então numa noite as coisas mudaram.

Cheguei do trabalho, mortalmente cansado. Pensava em jantar, tomar um banho e propor um filme debaixo das cobertas. Até tinha escolhido um: Casablanca.

Abri a porta de entrada, e estranhei o apartamento estar às escuras. Tateei pelas paredes em busca do interruptor. Quando a luz acendeu notei que a sala estava vazia, mas do quarto provinha certa luz. Dirigi-me pra lá, e abri a porta.

Seu corpo estava estirado na cama, nu como veio ao mundo, sobreposto a outro. Agitava-se loucamente, como que suas vidas dependessem de terem que atingir o orgasmo. Pararam ao notar minha presença, que sorrateiramente não foi sentida uns segundos atrás. Respiraram, e me disse numa voz ousada:

- Quer participar?

De antemão, digo que sou adepto a tais aventuras no mundo do sexo. Mas aquela noite não, eu não tinha disposição sequer pra um quem dera dois.

Suspirei e disse numa voz um tanto irritada:
- Por favor, tantas noites e vocês escolhem justo essa? Planejava algo especial.

O outro, assustado com a minha chegada, foi pegando suas roupas que estavam espalhadas no quarto.

- Não, não precisa temer. Não temos um relacionamento convencional.
- Sério? – De um tom ousado, sua voz foi pra desafio – Tantos meses e você diz que não temos nada?
- Ué, e temos? – Fiz um ar de desentendido – Ninguém me disse.

Mesmo com meu aviso a pessoa partiu mal se despedindo. Enfim estávamos a sós. Nem demos por falta.

- Pensei... Pensei que tínhamos algo especial. – Parecia que ia desabar em choro a qualquer momento.
- E temos. Mas achava que nosso acordo era não ter nenhum relacionamento sério.
- Mesmo assim...
- Veja bem – larguei a bolsa no canto e me sentei ao seu lado – Se você realmente se importasse com isso, não me estaria “traindo”. O único trato era o uso de camisinha, e espero que você tenha cumprido isso.
- Não se preocupe com isso – e apontou o preservativo usado ao lado da cama. – Eu... Eu não quis fazer isso, acredite. Encontramo-nos no shopping, surgiu um clima, conversamos e então...
Sorri e disse num tom afável
- Não se culpe, eu não estou te repreendendo. Você é livre para fazer o que quiser. Nunca exigi nada.
Ele parou por uns instantes, absorto em seus pensamentos. E disse lamuriento:
- Não posso mais continuar com isso, não posso. Eu tento, mas não dá mais...
Foi a primeira vez que fiquei surpreso naquela situação toda. E de surpresa passava para a decepção, e eu sabia que passaria para tristeza em breve. Não tínhamos nada firme, mas eu nutria sentimentos. Rapidamente retomei as rédeas.
- Acho que te entendo... Nem todos estão preparados. Inclusive eu.
E então desatou a chorar, e recostou a cabeça no meu ombro. Acariciei seus cabelos e disse, tentando passar confiança:
- Vamos... Está tudo bem. Trouxe um filme para vermos.
- Qual? – enxugava as lágrimas com as costas das mãos.
- Casablanca.

Sorriu, e concordou. Eu disse que tomaria banho, e que ele fosse colocando o filme.

Abraçados no sofá, sentíamos a força que emanava daquela película antiga. Os protagonistas tinham uma incrível sintonia, e até ouso dizer que parecíamos com eles. Aprumou-se nos meus braços e me beijou. Ali havia um quê de despedida, algo que se esvaía. E foi no justo momento que os protagonistas se beijavam.