sábado, 13 de setembro de 2014

Relembrança


A luz está me fazendo em pedaços”
Dr. Manhattan

Vamos relembrar do seu corpo sobreposto ao meu. De quando você suava fino em contato com minha pele, dos seus lábios perpetrando os meus. Eu tinha prometido a mim mesmo que não lamentaria e que sequer faria menção ao seu nome. Mas eu, como um bom e servil apaixonado, arrasto as correntes da prisão em direção a sua fatídica memória e existência.

Eu quero relembrar o seu corpo, meu amor. Cada detalhe perverso e delicioso, cada rusga de preocupação na sua testa ao me ouvir dizer que voltei a pé para casa. Quero relembrar tudo, desde o momento insano em que você entrou na minha vida até o momento triste que você saiu.

Você saiu, meu amor. Saiu e deixou a porta aberta, e por ela entra um forte vento invernal.

Gostaria de tentar conceber meus dias sem você, mas isso se mostra impossível. Quando me dou conta de que você está em cada centímetro do apartamento, e pior ainda, em cada centímetro do meu âmago, caio em desespero. Passei a acreditar que você não é humano, que sua existência na Terra é puramente castigo divino.

Mas vamos relembrar. Lembra-se de quando pedimos pizza de calabresa e fomos assistir a um filme em plena sexta-feira à noite? Sim, eu sei que fizemos isso praticamente em todas as sextas-feiras desde o início do nosso relacionamento. Tente se concentrar em uma específica... Aquela sexta-feira em que você me disse: eu te amo. Em meios a mordidas na pizza e dois goles no vinho, e em enquanto a Kate Winslet gritava dizendo que o filho da Jodie Foster mereceu apanhar do filho dela. Pois já não bastava a Kate estar gritando, você também tinha que gritar. E as consequências desse seu ato foram mais vis e terríveis do que qualquer filme do Polanski.

Você gritou, e me soltou na claridade. Tudo me fez em pedaços, meu amor. Você me jogou na porra do abismo amoroso, aquele em que a gente tenta se agarrar nas paredes, mas descobre que as mesmas são completamente lisas. Mas sinceramente, eu nem fiz menção em me segurar. Pois eu confiava em você, e por Deus, eu deveria ter ouvido o conselho dos nossos pais: só confie em si mesmo.

Mas eu estava tão ciente de que você me protegeria das águas turvas do poço, meu amor. Acreditava fortemente que você me colocaria nos seus ombros, e diria para eu não me preocupar. Não adianta praguejar contra os céus, dizer o quão fui burro. É chover no molhado, é dar murro em ponta de faca. Eu tinha ciência do que poderia acontecer. Sempre tive. Mas eu estava tão absorto na ideia de ter uma paixão, de finalmente adentrar pelos portões dos paraísos artificiais. Eu me ceguei de propósito, e veja agora: eu ainda permaneço cego, embora hoje em dia a cegueira seja de dor e não mais de amor.

Vamos voltar aquele dia tão singular, 29 de fevereiro. Depois de termos feito amor, você começou a discutir por uma besteira qualquer. Eu sei, o motivo de rompermos não foi à discussão em si. Nunca é. Foi tudo aquilo que ardia por debaixo dos panos, de toda sujeira que mês após mês escondíamos. Tudo veio à tona como uma ferida podre é exposta pelo médico. Mas o médico sabe como cuidar da ferida, e naquele momento eu assumi esse papel. Vi ali a tentativa de fuga, de conceber enfim paz aos nossos corações. Eu te amo, e você ainda me ama. Mas simplesmente não podemos mais ficar juntos, porque não nos suportamos.

A lua tímida fustiga meu corpo. Eu tomo o meu vinho mais caro em um copo de plástico, sem filme e sem você.


E como é péssima a sensação.               

sábado, 16 de agosto de 2014

O Sorriso e Seus Horrores

O hotel apresentava simplicidade, tanto externamente como em seu interior. Móveis rústicos, paredes pintadas em cores neutras, plantas e flores comuns. O nome do hotel era Honolulu e em breve abrigaria uma assassina e sua vítima.

Ela caminhava em passos calmos pelo amplo corredor. O homem que lhe seguia estava completamente bêbado, quase derrubando os vasos. Mas ela estava firme, embora tenha tomado cinco generosos drinques de alguma bebida com vodca. Sorria um sorriso vermelho, com o batom marcando o colarinho do sujeito quando ambos adentraram no quarto. Suave, ela o despia, e o fazia uivar como um gato na cama. Ela era boa nisso, sempre fora. Ela os fazia esquecer o que eram ou onde estavam. E quando isso acontecia, sua faca entrava macia na garganta.

O homem gorgolejou algum pedido de socorro, e caiu da cama, sujando tudo de um escarlate muito vivo. Ela se levantou vitoriosa da cama, com a faca ainda pendendo em seus dedos. Sorria, sempre sorria durante todo o processo. Ele tentava de alguma forma fugir, escorregando em seu próprio sangue. O desespero estava estampado em seu rosto, para o deleite de sua acompanhante. Novamente ela adota o andar calmo, compassado, ensaiado. O homem ainda chega à porta, em um esforço descomunal. Mas desfalece, como um saco de frutas podre. Ela pega todo o dinheiro de sua carteira e todas as joias que este tiver. Eles sempre eram ricos.
A pior parte era limpar. Ela removia o corpo, colocava na cama e limpava tudo que podia. O corte da lâmina seria eternamente evidente, mas de alguma forma ela tentava disfarçar. Finda a faxina, tomava um banho. Esfregava todo o seu corpo, a fim de se livrar de possíveis evidências. Por fim, jogava a faca pela janela. O artefato cai brilhante no rio que corre ao lado, desaparecendo de vez com qualquer conexão.

Ela ainda dá um último beijo nos lábios sem vida de suas vítimas. E alguns minutos depois, sai triunfante pelo hall de entrada. Nunca repetia os hotéis, e nas suas costas já acumulava três assassinatos. A polícia já estava fazendo as ligações entre os casos, e ela precisava ser ainda mais sutil.  

Boa parte das luzes do Hotel Honolulu está apagada, só descobrirão o corpo pela manhã. Ela não tem pressa.

Ela nunca tem pressa.

***

Ela fora estúpida, burra e cega. Porque foi se apaixonar? E pior, se apaixonar por uma potencial vítima. Desde sempre tivera a compulsão por matar, em destruir a criação perfeita de Deus. Dava-lhe prazer ver os últimos suspiros de alguma pobre alma, de sentir a vida vazando pela sua respiração. Mas ele... Era duplamente desejável: um lado seu ansiava, pulsava por ceifá-lo. Outro ardia de tesão, querendo que ele é que a matasse. Mas de prazer, de paixão.

Sem saber muito bem o que estava acontecendo e o que estava fazendo, começou a se envolver com o tal rapaz. Ele era gentil, inteligente, esperto e deliciosamente pervertido. Contra a sua vontade, os sentimentos entraram na jogada. Nunca fora “fisgada” por alguém, mas como dizem: há uma primeira para tudo.

Decidiu que o desfecho daquilo se daria no Honolulu. Nunca voltava ao mesmo hotel duas vezes, e sabia que estava cometendo um ato imprudente. Mas ele lhe envolvia em seus braços, tão tranquilamente que parecia que eles eram feitos apenas para abraça-la.

Fora burra.

Fora estúpida.

Estava agora presa na cama, em algemas tão grossas quanto seu antebraço. Pela primeira vez em muitos anos, sentia medo. O horror gelar a espinha. Ele estava do outro lado da sala, com um sorriso tão encantador e igualmente mortífero. Tinha sorrido a noite inteira. Uma adaga, incrustada com adornos e símbolos, dançava em suas mãos. Ela sabia que todo o carma acumulado enfim havia se voltado contra ela. Seus passos eram calmos, como um tigre entediado que ver-se obrigado a se alimentar. Ela sabia que era inútil gritar, só dificultaria a situação. Ao mesmo tempo em que balbuciava palavras, que tentava estabelecer alguma comunicação, forçava a corrente da algema o máximo possível. Perto do dossel da cama estava sua bolsa, e dentro dela encontrava-se uma Beretta que há muito ganhara de presente de seu pai. Ela também planejava mata-lo, desde que pisaram no Honolulu. Acreditava que ele não estava percebendo, não tinha como. Ele subiu na cama, desabotoou o vestido de sua vítima com a adaga, e sorria. Sempre sorria.

Então um som reverberou pelas paredes, e um clarão pode ser visto da janela do oitavo andar do Hotel Honolulu. A Beretta enfeitava a mão da experiente assassina, que mais uma vez a disparou. Mais surpreso do que padecendo da dor do tiro, o jovem assassino caiu pesadamente sob o assoalho. Horrorizado, estupefato. Ela atirou contra os grilhões que a prendia. Em breve pessoas bateriam na porta, ela tinha que ser rápida. Não adiantava arrancar nada dele. Sabia que ele era como ela: um ser escravo do prazer de matar.
Fechou os olhos, e atirou mais uma vez.

Quando a polícia e os seguranças do hotel chegaram ao quarto, encontraram um cadáver recheado de tiros, mal possuindo sangue em seus buracos. Um leve cheiro de alvejante enjoava o ambiente, e ainda dava para ver resquícios de água e produtos de limpeza pelo quarto. A janela estava aberta, a que dava para o rio. Em seus vitrais preso estavam uma fita vermelha, provavelmente de algum vestido rasgado, como que um lembrete.


Eles sabiam que era ela. Sempre era ela. 

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Sábado à Noite, Domingo de Manhã

Pedro encontrou os escritos do filho no dia seguinte após sua morte. Estavam debaixo do colchão, junto com sacolas plásticas e outros lixos. Não procurava exatamente aquilo, até porque não sabia o que procurava. Talvez procurasse o filho, esperava que ele fosse aparecer na porta de repente. Pedro sentou na cama, e começou a ler:

Quarta-feira, dia 13 de agosto de 2013

Depois de tantas pistas e indiretas, eu disse ao pai que eu era gay. Ele surtou, como era de se esperar. Incrível como sua mente fechada e arcaica insiste em acreditar que eu sou o errado da situação. Será que ele não percebe que não tive escolha? Quem, em nome do Deus que ele tanto ama, iria quer uma vida de preconceitos e penúrias?
Continuando... Ele me mandou ir jantar. E depois disso que eu não saísse mais do quarto, até a hora da escola no dia seguinte. Ele claramente não queria ver mais meu rosto antes de decidir o que fazer. Meu pai... Um homem, de certa forma, bom. Trabalhador, gentil à sua maneira. Está acuado, está sem chão. Seu único filho é, pejorativamente, um “viadinho”.  Depois da morte de mãe, ele não sabe o que fazer comigo. Não era e nunca será um homem dado a cuidados e sentimentalismos. Ele é um homem, acima de tudo, prático. Não tem tempo para teorias infundadas, abstratas, sobre o universo ou sobre a percepção da realidade. Para falar a verdade, achava que ele seria mais rude. Que iria me bater. Mas ele não sabe como reagir. Ele, depois de muitos anos, não sabe como lidar.
                                                                                              
                                                                                                              Jonatas


Pedro olho pela janela, sobre o triunfante domingo que surgia. Eram exatamente 8h15 e dali a duas horas seria o enterro de Jonatas. O filho tinha acertado em cheio: Pedro não tinha sabido lidar. Nunca soube lidar com essas coisas. Quem saber lidar nesse tipo de situação era sua falecida esposa, Cecília. Ela sim teria guiado o filho. Teria aconselhado. Mas nem ela e nem o filho estavam presentes mais. Era Pedro sozinho.
Jonatas tinha escrito muitas coisas, umas sobre sua vida outras sobre a vida dos outros. Diante dos olhos de Pedro estavam artigos minuciosos de filosofia, contos obscenos de homens com outros homens, relatos detalhados sobre as finanças da casa. O que passava pela cabeça de Jonatas, Pedro acreditava, era mistério até mesmo pros deuses.

Sorteou uma folha amarelada, seguinte ao dia 13 de agosto.


Quinta-feira, dia 14 de agosto de 2013

Papai sequer olhou para mim no café da manhã. Disse apenas palavras esparsas sobre isso ou aquilo. Preparei minha mochila, como de costume, e fui para escola. O dia transcorreu normalmente, exceto uma única coisa. Uma coisa que iluminou todo o dia.
Alexandre disse que me amava. Assim, como quem se pede a borracha emprestada. Eu não consegui dizer nada, só queria beijá-lo. Sim, sim! Eu quero amá-lo! Minha felicidade transbordava em longos beijos. Alex beija como ninguém. É, é um pensamento infantil, de menininha encantada com o príncipe. Mas o que posso fazer? Encontrei um homem maravilhoso. A vida me deu um presente. E que presente!


Alexandre... Pedro se lembrava do simpático rapaz. Alto, moreno, com um olhar esperto. Agora, depois da morte do filho, percebe que só aceitou melhor a orientação de Jonatas por causa do Alex. Pedro custava acreditar, mas o amor enfim tinha vencido. E não era esse amor cristão pegajoso e medíocre. Era o amor pleno, entre duas criaturas que não ligam pro seus sexos.

E então, surpreendentemente, Pedro começou a chorar.

O filho não tinha se matado, amava a vida por demais pra fazer isso. Ele foi assassinado, assassinado por filhos da puta homofóbicos. Pedro praguejava. Ele deveria ter passado mais tempo com o filho, ele deveria ter aceitado o filho, deveria ter filho diversas coisas... Mas a única coisa que fez foi gritar e a relutar, a amaldiçoar o filho. Alexandre estava com ele, e também foi baleado. Estava no hospital, entre a vida e a morte. Pobres rapazes.
Enxugando as lágrimas, recomeçou a leitura.


Horas mais tarde, Alexandre estava por cima. E eu por baixo, a lhe lamber o mamilo. Era a primeira vez que eu transava com alguém. E este primeiro alguém era homem. Mas eu não ligo, não mais. É alguém que amo. O que papai dirá quando souber? Claro, partindo do pressuposto que ele saiba de algo. Mas ele sempre dá um jeito de descobrir.
No jantar também não falou muito. Que homem triste e velho ele é.
                                                                                                              
                                                                                                                       Jonatas
- Sim filho – Pedro falou – que homem triste eu sou.

A hora crucial se aproximava. Era hora de sepultar o seu garoto, o seu filho.

Decidiu levar a única folha que faltava, a do dia de sua morte. Iria lendo no caminho. Vestiu o paletó, ajeitou a graveta negra e trancou todas as portas e janelas. Caminhava ao ponto de ônibus, sozinho. Ele e Jonatas não tinham mais ninguém. A família sempre fora pequena, e foi encurtando no decorrer dos anos. Era Pedro só, irremediavelmente só.


Sábado, 16 de agosto de 2013

Depois de tanto pedir, Papai me deixou sair. É bom salientar que até ontem ele ainda permanecia em seu regime de quase silêncio. Até agora não sei a razão de ele ter me deixado ir. Disse que irei ao cinema, e vou. Mas vou com Alexandre, que ele conheceu rapidamente ontem. Pelo seu olhar, senti algo de aprovação. Como se estivesse orgulhoso, de certa forma. Não sei...

Enfim, irei partir pros braços do meu amor (e mais uma vez soou como uma menina apaixonada). Mas foda-se.

E eu só queria dizer que ao meu pai que eu amo muito. Como não quero que do nada ele desista e me mande ficar em casa, digo aqui:

Papai, eu te amo. Do fundo do meu pobre e apaixonado coração.
                                                                                              
                                                                                                                     Jonatas


Incrível como estas coisas acontecem, como se o falecido soubesse que sua morte fosse iminente. Pedro chorava silenciosamente no ônibus. Esperava o filho para jantar, quando recebeu a notícia. Seu filho e o suposto namorado (já que testemunhas disseram que eles estavam se beijando quando os meliantes apareceram) foram baleados defronte ao Cinema São Luiz. No momento, não há choro. Só choque e incredulidade. Pedro não dormiu, passou a madrugada no necrotério e resolvendo as questões do enterro. Seu filho não teria velório, e seria sepultado na manhã seguinte. E isto Pedro não sabia o que responder. Algo, uma força, o empurrava a fazer isso. Seu filho iria querer ser enterrado em uma manhã ensolarada de domingo, embora nunca ambos nunca tiveram essa conversa e duvido que qualquer pai teve esse tipo de conversa com o filho.

Nunca foram próximos, principalmente após a morte de Cecília. Nunca foram amigos. Mas se amavam, e se amavam fortemente. Um elo, maior que os céus e mais forte que a morte, os ligava. E enquanto o caixão de Jonatas descia calmamente ao sepulcro, Pedro só conseguia amar o filho. Ali, naquele momento, não tinha espaço para perdões ou arrependimentos. Pedro, mais cedo ou mais tarde, amaria o filho em sua condição. Amaria Alexandre, só pelo fato dele amar Jonatas. Amor e amor, era só o que cabia ali.

O caixão desce, e Pedro chora.

O amor aconteceu no sábado à noite, no cinema e entre dois jovens apaixonados. E o amor acontece agora no domingo de manhã, no cemitério e entre um pai e um filho que se amavam mais que tudo.


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Ano Cinza

Seu corpo estremeceu após o orgasmo. Era engraçado, mesmo após tantas e tantas masturbações. Tinha 15 anos, o auge da puberdade. Estava divido entre o prazer e a culpa, entre o gostoso e o doloroso. Ia todos os domingos à igreja, sem titubear. Entoava os cânticos o mais alto que podia, lia fervorosamente os versículos. Mas sentia que havia algo mais morando no seu interior. Algo que arranhava as paredes do seu ser, louco para escapar. Mas ele conseguia adormecer a fera, ano após ano.

Tinha 17 anos quando teve uma ereção ao ver o melhor amigo nu. A ereção lhe doía, como um espigão a cortar o tecido da bermuda. O sentimento de culpa latejava, alertando que ele queimaria no inferno. Em contrapartida, lhe deliciava a perspectiva de transar com outro homem. Ou sequer ter algum contato sexual. Percebera que transar com homens poderia ser surpreendentemente bom. Num arranco, se afastou da igreja, dando desculpas esfarrapadas. Sabia que não se afastava por conta de sua sexualidade, e sim porque se cansara daquilo. Não tinha mais sentido, não tinha mais prazer. Então se entregou aquilo que há muito lhe atormentava. Abriu uma porta, e o que ali havia lhe mostrou um mundo completamente novo.

Junto com as relações com homens, vieram os hábitos de beber e fumar. Sua sede de conhecimento aumentou, lhe forçando a buscar o tão sonhado presente de Atena em refúgios escuros. Julgava que mantinha uma vida boa, conciliando os estudos com o lazer. Nem o vestibular iminente lhe incomodava. Podia contornar aquilo. Podia contornar tudo.

Fez 18 anos. E começou a sentir uma profunda melancolia. Permanecia fazendo as coisas que já fazia, mas agora parecia que aquilo tudo não tinha mais sentido. Era tomado por um profundo sentimento de cansaço. Metaforicamente, tentava ver o horizonte. E tudo que via era um cinza, um cinza tênue de nevoeiro. Conseguia enxergar a paisagem lá no fundo, embora distorcida, mas não conseguia ver o caminho até lá. Sentia-se atordoado, parecia que enfim tinha chegado ao ápice de tudo que sonhara. A adolescência lhe escapava pelos dedos, finalmente. Duas décadas de vida se aproximavam, e ele não tinha a menor ideia de como agir. O que lhe esperava era segredo até mesmo pros mais sábios, aqueles que já viveram essa fase. O que lhe restava era esperar o nevoeiro passar, o caminho surgir radiante como o amanhecer.


Entretanto, o cinza lhe abraçava como um amante. E o seu abraço era frio como a morte.  

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Especial - As Crônicas de Gelo e Fogo e o Tem

Em 1996 despontou As Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire), quando depois de muito tempo o norte-americano George R. R. Martin decidiu publicar aquela que seria uma das sagas de fantasia mais aclamadas dos últimos anos. O segundo domo, A Fúria dos Reis, foi publicado dois anos depois e não muito tempo o terceiro volume, A Tormenta de Espadas. A partir daí surgiu o maior desafio que ASOIAF tem enfrentado: o tempo.

Há um período de anos bastante significativo entre o Tormenta de Espadas e o Festim dos Corvos, quarto livro da série. E ainda mais significativo entre o Festim e o Dança dos Dragões. E isso sem comentar o fato que o sexto romance, Ventos do Inverno, não possui data definida. Em suma: o tempo de publicação dos livros é o grande problema na vida de todos aqueles que estão envolvidos com a saga: dos fãs até o próprio Martin.

O ponto que se deve ressaltar é: é justo esse tempo de espera?

Justiça é algo que não se encontra tão facilmente em ASOIAF. Desde a decapitação de Ned Stark em Guerra dos Tronos, até a “morte” do Jon Snow em Dança dos Dragões, somos compelidos a perguntar-nos frequentemente o que é justiça. Por mais que essas figuras sejam ficcionais, por mais que toda trama não passe de pura imaginação (mas com gloriosas pintadas de história real), sentimos o baque de sentir a injustiça repetidas vezes, nos livros e na vida. Muita gente busca a literatura para escapar do seu cotidiano, que muitas vezes é repleto de injustiça, crimes, dores, angústias... Mas são justamente isso que encontramos n’As Crônicas.

Nesse ponto, somo masoquistas: porque persistir numa leitura que de certa forma nos trás desconforto? Porque, enfim, esperar anos e anos para ler um livro que nos fará chorar e causar ranger de dentes?

Porque sem dor, não há literatura. Sem dor e sem demora, não há ASOIAF.

Martin nunca nos prometeu conforto em seus livros, nunca nos prometeu finais felizes e previsíveis. A função do George, como escritor, é nos tirar da zona de conforto. Dar-nos aquele soco na boca do estômago. Quem acompanha a saga, ou até mesmo a série televisiva, percebe a complexidade da obra. Percebe que a história que tem em mãos ou que suas retinas captam não é só a velha baboseira medieval. É uma história que poderia ser contada em qualquer época, em qualquer lugar. E principalmente, é uma história que preza seus personagens. São eles que movem tudo, são eles que nos fazem suspirar de alívio ou gemer de dor a cada virar de página. E causar esses sentimentos, meus caros, é difícil. Requer tempo, requer estudo, requer dedicação. A facilidade em apontar um dedo acusador pro George Martin é facílimo. Mas pimenta nos olhos dos outros é refresco. Imaginem a posição do velho homem de Santa Fé: cobrado, tendo que escrever um livro onde tudo enfim irá convergir, onde tudo finalmente irá acontecer. Suponho que leitores do Dança dos Dragões tenham sentido algo a mais: um retesar, um recuo, como uma corda do arco. Uma preparação de todos os personagens do drama, enfim prontos para o tenebroso inverno que chegou.

O tempo nos é crucial na vida, e disso todos tem ciência. Mas então porque o tempo não pode agir em ASOIAF? Querem os fãs um livro esfarelado, ruim? Na opinião do humilde escritor, deixem o George Martin escrever. E que isso dure o tempo necessário. A ansiedade existe por parte de todos, sim. Mas meus caros, é o maldito inverno que chegou a Westeros. Vocês realmente têm certeza que estão prontos para ele?

E lembrem-se: George Martin não é sua vadia.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Velhice

Nanda esticou a pele ao redor do olho. Envelhecia descaradamente. Abafou o suspiro, não queria admitir isso para si mesma. Tantos anos tinham passado, inúmeros projetos feitos e refeitos, tantos amores perdidos... E ela envelhecia na cidade suja. Agora desprovida de sentimentos e sonhos, Nanda caminha para o closet onde procura o vestido preto básico. Combinara de tomar uma cerveja com as amigas, afinal era sexta-feira. Seu empreguinho de operadora de caixa ao menos lhe permitia algumas horas em companhia de uma cerveja boa e de amigas ruins. Eram outros que envelheciam, seus amigos. A juventude há tempos fugira de seu cotidiano, lhe obrigado a ficar com os que tinham se deixado derrotar. Enfim, Nanda estava infeliz. Nanda estava melancólica. Nanda estava velha.

Decidiu ir a pé, embora o bar ficasse a 1 km e meio de distância. O céu estrelado e a lua gigante não conseguia animá-la. O que acontecera, ela se viu perguntando. O que diabos eu fiz da minha vida? Eu não era a “menina prodígio”, a que teria um futuro brilhante pela frente?

Nada lhe restava, nem sequer o amor próprio.

No bar fingiu rir, fingiu estar bem, fingiu se importar com suas colegas. No fundo todas elas eram iguais: Frígidas.

No fundo, Nanda pensou, todas elas estavam ficando velhas.


 - Meu Deus – Nanda falou em voz alta o bastante para deixar suas amigas confusas – eu estou ficando velha. 

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Dias Santos

A quinta enfim tinha virado Sexta da Paixão. A cidade de repente se esvaziou, se encolheu, como se todos temessem se divertir nos dias sagrados. Mas eu não me importava com isso, não mais. Algo em mim tinha morrido, e eu acreditava firmemente que era a minha fé. Não doeu, nem senti, mas eu sei que morreu.

Nem sequer havia vento. Os peixes sendo cozinhados com calma nas casas, famílias que ansiosas esperavam abrir seus chocolates, filmes sacros se repetindo na TV. Acendi um cigarro, e este varava a noite como uma flecha incendiária. Procurava alguém, ou procurava algo, mas não sabia exatamente o que. Procurava em mim mesmo alguma explicação para tanta frieza. Após anos e anos como uma boa ovelha, cabeça curvada perante o púlpito, apertos de mãos frouxos, olhares perdidos por cima dos bancos, saias apertadas em coxas brancas, calças sociais, Bíblias velhas, hinários amarelados... Algo se perdeu. Algo se soltou. Na escuridão, na vastidão carnal. Era eu, sendo desemparado pelo seio cristão. Enfim solto, mas para que?

Encontrei meu grande amor na igreja. Um homem. Sim, era errado. Erradíssimo, inconcebível, nojento. Primeiramente achei que seria apenas um amor platônico, sem grandes chances. Mas ele veio. Embalou-me em seus braços em noites frias em acampamentos. Enquanto aleluias eram entoadas na noite, ele varria com perícia meu corpo. Cada centímetro, cada cicatriz, cada sinal... Ele me conhecia. E eu o conhecia. Era aquilo, amor puro. Como Deus ama seus filhos hipócritas e bajuladores.

Mas descobriram. E depois de tantas conversas infrutíferas e conselhos frouxos, decidimos sair da igreja. O mundo enfim. Álcool, drogas, livros, filmes, cultura, liberdade, tudo aquilo proibido. O desejo fluía cada vez mais forte, impossível de ser controlado. Eu estava apaixonado, e eu sabia o quanto isso era terrível. Eu estava à mercê. Eu estava frágil.

Agora, Sexta da Paixão declarada, caminho pelas ruas. Meu parceiro decidiu viajar, comer o velho e enjoativo peixe de coco. Não o repreendo, a religião ainda é muito forte nele. Mas e eu? E sobre a morte da minha fé? Tudo é labirinto, tudo é beco sem saída. Sinto-me cansado, para dizer a verdade. Talvez minha fé fosse cansaço, e quando decidi despertar e ver além do coelho e da cartola, vi um mundo igualmente podre. Sem Deus, sem fé, sem nada. Oco, como um sepulcro.

Sábado de Aleluia

Domingo de Páscoa

Haverá uma ressuscitação. Da minha fé, suponho. 

terça-feira, 25 de março de 2014

As Palavras

As palavras estalavam como chicote. Doíam. Magoavam. Iludiam. Carmen odiava isso, odiava se sentir impotente diante de um homem. E Gustavo era terrivelmente sedutor, terrivelmente perfeito. Carmen abaixou a cabeça, como quem vai chorar. Mas iria chorar mais. Não por Gustavo e nem por nenhum outro homem.

Mas as palavras continuavam a latejar como uma ferida inflamada. Carmen se sentia bamba, sem equilíbrio. Gustavo, inflexível e imponente do outro da sala, continuava encarando-a de uma forma perversa. Ele era perverso. Carmen não conseguia compreender a razão ou embriaguez que a fizera gostar dele. E Gustavo continuava a encarar, com os olhos se tornando negros a cada segundo. Carmen agora tinha medo. Mas ela sempre teve medo.

As palavras confortavam-na. Depois que Gustavo lhe batia, ela sentia os beijos úmidos e cheios de pedidos de desculpas. Faziam amor, ou era isso que chamavam. Carmen era apenas montada como se fosse uma égua, penetrada tão forçosamente que doía. Ela não facilitava, apanhava de novo. Um olho inchado, um lábio ferido e o ego destroçado eram o saldo da noite.

As palavras são vingativas, saem em uma torrente de verdades quando ela enfia a faca nas costas de Gustavo. As palavras são penosas, quando ele em uma poça de sangue suplica misericórdia. As palavras eram de culpa, quando o último suspiro escapuliu dos lábios do crápula. As palavras eram de confissão, diante da polícia. As palavras eram silenciadas, diante de um júri. As palavras eram abafadas aos murros dentro de uma cela. As palavras lhe eram guardadas, até se transformarem em pensamentos obscuros.
As palavras agora eram de arrependimento, conformismo e saudade.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Nós Não Sabíamos Amar


Não sei exatamente, mas eu tenho uma enorme vontade de voltar ao apartamento dele e perguntar a fatídica pergunta: Você aprendeu amar? Se ele me respondesse que sim, eu juro que largaria tudo e me jogaria em seus braços mais uma vez. Eu não considero as consequências desse ato. Eu não me importo com o que a mãe maluca dele irá dizer. Apenas quero ouvir: Sim, eu aprendi a amar. 

Nenhum de nós dois sabíamos amar. Éramos crianças confusas brincando no quintal em uma tarde de outono. O quintal era os nossos corpos. Tateávamos a procura da alma que supostamente emerge na pele. Nada encontrávamos. Mergulhávamos em um estado de total entrega e torpor naquelas noites de setembro. A alma nunca emergia, e nós estávamos nos cansando daquilo. Porque nós não sabíamos amar. Ninguém sabe, acho. Apenas lemos o que Camões escreveu, nos inspiramos, e procuramos desesperadamente alguém com quem praticar aquelas coisas. Se é que o amor é praticável, lógico. 

Aí ele foi embora, ou eu decidi ficar. O importante é que nós separamos. Pois nós não sabíamos amar. Triste, mas é a verdade. 

Tomei coragem e fui ao apartamento dele. O buquê de flores murchas a colorir o ambiente cinza do edifício. Ele abriu, mas não sorriu como outrora fazia. Apenas soltou uma exclamação de desprezo, e disse para ir embora. Tentei argumentar, tentei dizer que ambos podíamos aprender a amar. Ele disse que já sabia amar, há tempos sabia. Ele só não tinha aprendido a me amar. Fechou a porta, e qualquer possibilidade de eu reentrar na vida dele.

Fui embora, me ocupei com a vida. Esqueci, superei. Estou bem. 

Mas tenho certeza de que ele ainda não aprendeu a amar. Ninguém sabe, imagino.

As Palavras Incompreensíveis de uma Alma Confusa


Talvez em outro tempo eu soubesse o que fazer. Mas hoje, tão inundado com esses problemas, não consigo pensar em nada. Não me refiro somente aos problemas práticos e corriqueiros, mas principalmente aos problemas internos. Sabe, aqueles besouros que desatinam a nos incomodar.

Quando me ponho a pensar na grandiosidade da vida e das coisas, percebo que entro em um estado letárgico. Talvez Platão esteja correto acerca do “mundo perfeito acessível apenas pela razão”. Quando ouso questionar Deus, quando digo que as coisas para mim são diferentes, sinto um choque. Algo varre meu ser. Eu não sei o que é, e não sei se é Deus. Só sei que eu sinto e por nome Dele, percebo que sou demasiadamente humano.

“Só o sofrimento nos torna humanos”. Eu concordo com isso, Unamuno. Pois que outro ser sofre como nós? Que outro ser parece ter uma queda, uma simpatia, um desejo pela dor? Isso é tão sádico. Mas gostamos, adoramos isso. 

Então agora entramos em amor. O tema parecia inevitável. Somos animais sentimentais fuçando a relva da vida. Há humanos que conseguem viver sem amor, mas eu me pergunto: Será que eles são felizes? Duvido.

Mas eu duvido da minha própria sombra. Eu não tenho o direito de questionar a vida de ninguém. Eu vou ficar aqui, pensando e comtemplando o vazio.