A quinta enfim tinha virado Sexta da Paixão. A cidade de
repente se esvaziou, se encolheu, como se todos temessem se divertir nos dias
sagrados. Mas eu não me importava com isso, não mais. Algo em mim tinha
morrido, e eu acreditava firmemente que era a minha fé. Não doeu, nem senti,
mas eu sei que morreu.
Nem sequer havia vento. Os peixes sendo cozinhados com calma
nas casas, famílias que ansiosas esperavam abrir seus chocolates, filmes sacros
se repetindo na TV. Acendi um cigarro, e este varava a noite como uma flecha
incendiária. Procurava alguém, ou procurava algo, mas não sabia exatamente o
que. Procurava em mim mesmo alguma explicação para tanta frieza. Após anos e
anos como uma boa ovelha, cabeça curvada perante o púlpito, apertos de mãos
frouxos, olhares perdidos por cima dos bancos, saias apertadas em coxas
brancas, calças sociais, Bíblias velhas, hinários amarelados... Algo se perdeu.
Algo se soltou. Na escuridão, na vastidão carnal. Era eu, sendo desemparado
pelo seio cristão. Enfim solto, mas para que?
Encontrei meu grande amor na igreja. Um homem. Sim, era
errado. Erradíssimo, inconcebível, nojento. Primeiramente achei que seria
apenas um amor platônico, sem grandes chances. Mas ele veio. Embalou-me em seus
braços em noites frias em acampamentos. Enquanto aleluias eram entoadas na
noite, ele varria com perícia meu corpo. Cada centímetro, cada cicatriz, cada
sinal... Ele me conhecia. E eu o conhecia. Era aquilo, amor puro. Como Deus ama
seus filhos hipócritas e bajuladores.
Mas descobriram. E depois de tantas conversas infrutíferas e
conselhos frouxos, decidimos sair da igreja. O mundo enfim. Álcool, drogas,
livros, filmes, cultura, liberdade, tudo aquilo proibido. O desejo fluía cada
vez mais forte, impossível de ser controlado. Eu estava apaixonado, e eu sabia
o quanto isso era terrível. Eu estava à mercê. Eu estava frágil.
Agora, Sexta da Paixão declarada, caminho pelas ruas. Meu
parceiro decidiu viajar, comer o velho e enjoativo peixe de coco. Não o
repreendo, a religião ainda é muito forte nele. Mas e eu? E sobre a morte da
minha fé? Tudo é labirinto, tudo é beco sem saída. Sinto-me cansado, para dizer
a verdade. Talvez minha fé fosse cansaço, e quando decidi despertar e ver além
do coelho e da cartola, vi um mundo igualmente podre. Sem Deus, sem fé, sem
nada. Oco, como um sepulcro.
Sábado de Aleluia
Domingo de Páscoa
Haverá uma ressuscitação. Da minha fé, suponho.
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