terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Fotografia em Família

Era Natal. Todas as luzes acessas, pomposas ceias, presentes baratos. Eu me afastei um pouco da mesa, e fui bebericar meu vinho na varada. Confesso que o burburinho das conversas falsas entre meus parentes me enojava a tal ponto que eu estava prestes a vomitar. Mas eu não era o único: Todos os meus primos pelo visto fugiam também. Todos nós estávamos na casa dos vinte, ou fazendo a transição. Mas também confesso que gostava de poucos deles. Eram pudicos demais, ou hipócritas demais. Tão jovens e tão atrasados. Fui então conversar com uma prima distante, vinda do interior. Seu olhar conciso, de quem também queria fugir dali, me enfeitiçou a tal ponto que mal pude conter o entusiasmo. Mas eu gostava de garotos, e ela logo percebeu. Não disse nada, claro. Infelizmente determinadas coisas transparecem em gestos e expressões, sempre algo que não se pode evitar. Ela deu uma desculpa qualquer, e se afastou.

Com meu cálice já vazio, me obriguei a entrar aquela selva de vozes e gritinhos excitados de fofocas. Peguei a garrafa de vinho sem pudor algum e voltei. E no mesmo lugar onde minha prima estava agora tinha um garoto do qual eu não conhecia. Aproximei-me dele.

- Oi.
- Olá.
- Com que você está?
- Com teu primo Beto.
- Ah, massa. E qual é teu nome?
- Gil.
- Prazer, Patrick.

Apertamos as mãos. Foi delicado, mas ao mesmo tempo forte. Talvez fosse impressão minha, mas por um momento eu tinha sentido que ele havia alisado meu polegar.

- Quer vinho?
- Ahn... Sim, obrigado.

Ele mostrou a taça e eu enchi a ponto de transbordar. Parecia que eu queria embebar o garoto.

- Foi muito?
- Não, está perfeito.

Seria entediante dizer tudo o que conversamos, mas houve um momento interessante.

- Você é solteiro?
- Por quê? Interessado em mim?
- Talvez...

E ele sorriu. Um sorriso gostoso e espontâneo. Aquela boca parecia emanar um convite.

- Bom, eu tenho que ir agora.
- Mas já?
- É... Eu e teu primo vamos lá em casa...

Meu primo Beto veio do fundo da selva. Cumprimentou-me e fez algo que me surpreendeu: Deu um rápido beijo em Gil. Aquilo me surpreendeu, confesso. Não achava que Beto fosse...

- Temos que ir agora Patrick. Já falei com todos lá dentro – Beto praticamente arrastava Gil.
- Ah, ok.
- Até mais Patrick, e obrigado pelo vinho – Gil deu um largo sorriso.
- De nada.

E se foram. De mãos dadas, desafiando a conservadora família. Eu permaneci com o vinho na varanda. Volta e meia entrava na casa, trocava algumas palavras com o pessoal. Mas a minha ceia foi na varanda.
Essas coisas só acontecem no Natal.

Acordei. Gil dormia ao meu lado. Então fora tudo um sonho. Fui a cozinha, bebi um copo d’água. Hoje já era 23 de dezembro, amanhã era a grande ceia com a família. Gil detestava aquilo, mesmo após cinco anos de relacionamento. Eu não conseguia parar de pensar no sonho. Na verdade, o que tinha acontecido na vida real era o oposto. Era Beto na varanda, com a garrafa de vinho a conversar com Gil. Foi eu a arrastá-lo para fora, a fim de leva-lo para meu apartamento para nós fazermos nossa própria ceia.

Então, num ímpeto terrível fui vasculhar o álbum que tinha em casa. Todo ano, religiosamente, minha família tirava uma foto com todos. E eu vi: A cada ano dos cincos anos de relacionamento entre eu e Gil, eu notei a aproximação dele com Beto. No primeiro ano, distantes e normais. No segundo, lado a lado. No terceiro, uma mão no ombro. No quarto, um braço passado pelo corpo. E no último ano, mesmo com o máximo de discrição possível, podia se ver as mãos de ambos entrelaçados. Por incrível que parecia eu não me abalei. Apenas fui buscar uma garrafa de vinho. Acho que a bebida oficial da depressão.

Estou ansioso pela próxima foto da família.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Vida Lá Fora

Naquela rodinha de amigos enquanto todos fumavam maconha, ele pensava. Pensava, pensava... Pensava em ir embora dali. Ali não era seu lugar. Um lugarzinho bem profundo em sua consciência martelava lhe dizendo que aquilo era errado, que Deus o julgaria. Ele recusava todas as vezes que lhe oferecia o cigarro, compenetrado em seus pensamentos. Eles já tão chapados não estranhavam. O que seus pais iriam dizer se o visse em companhia de maconheiros. Ele cairia em desgraça, a honra da família ultra cristã e conservadora ficaria maculada. Só conseguira escapar aquela noite pois estava em uma festa de amigos de confiança, amigos que os seus pais juravam que eram crentes devotos. Ele enfim viu a hora. 23h. Não daria pra ir sem levantar suspeitas. Então se encostou no sofá, e quando o baseado lhe foi ofertado mais uma vez, ele aceitou.

Não era a primeira vez que fumava, e muito menos a primeira vez que bebia. Às vezes fumava cigarros no pátio da escola e já tinha transado com umas garotas. Um adolescente “saudável”. Mas ele precisava de mais, e ele tinha plena certeza disso. A vida não era só feita de maconha, bebida e fodinhas. A vida era mais. Era aquilo invisível sobre o visível, era aquilo que acontecia pra valer no mundo lá fora. Eles só eram uns garotinhos da classe média que se achavam o máximo por fazerem o que estavam fazendo. Mas eles todos sabiam – e ignoravam – a vida lá fora. Os homens simples que movimentavam o país e as mães solteiras que faziam o impossível para darem vida digna aos filhos. Eram seus próprios pais, que mesmo envoltos nas cortinas da hipocrisia e da rotina, lhe proporcionavam o pão. Mas eles não se interessavam por isso. Apenas ele se importava, apenas ele tinha ânsia de viver tudo que haveria de ser vivido.

E quando de repente a porta se abriu e os pais de quase todos ali romperem aos berros, ele mantinha uma expressão serena. De alguém pronto para viver. Sim, no fundo ele sabia que aquelas indagações soavam estúpidas. Mas ele também sabia que viveria mais intensamente do que os seus amigos. Sem ser notado, saiu do aposento e foi ver a cidade. Pálida, trêmula, esguia. Ele sorriu. A vida começava agora. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O Corpo

Era a boca. Definitivamente era a boca. A perfeição em forma de lábios. O doce negrume que me chamava cada vez mais. Que lambia com delicadeza, que beijava com fervor. E quando se afastava de mim, eu faltava suplicar e pedir feito criança. Decidida, não retornava. Ia embora. Só voltava quando queria. E eu permanecia chorando e suplicando. Mas crianças precisam ser repreendidas.

Eram os braços. Definitivamente eram os braços. Fortes, rígidos, alvos. Que me seguravam com tamanha destreza. Que me envolviam com doçura. Ali eu encontrava acalento. Eram meus portos seguros. Mas eles também iam embora. Jogava-me no ar, eu suspenso no nada, e me deixavam cair. Nada adiantava implorar.

Era o genital. Íntimo, incauto. Portal de noites de prazer, dono da minha satisfação. O único que tinha o poder de dissolver qualquer mau humor. Era aquilo que mantinha o segredo da plenitude. Mas ele não estava isento. Ia embora.

Era o coração. Perfeito, forte, íntimo. Era o coração o centro de todo nós, o local exato da extrema felicidade. Ali não tinha como discordar ou discutir. Ali, e só ali, eu sentia que as coisas ficariam bem. O coração, em seus múltiplos batimentos, emanava a essência do nosso amor. Mas lógico, este também fora embora.  E quando este partiu, acho que perdi a noção das coisas. Desaprendi o significado de “perfeição, força e intimidade” em relacionamentos. Agora permaneço só.


É a solidão.