segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A Marca

   Eric acordou como num clique, em um apartamento estranho. Um homem estranho dormia ao lado e ele não não fazia ideia de como havia parado ali e o que tinha feito na noite anterior. Sua cabeça doía, e sua alma se revestia de uma pura ressaca moral que sempre o deixava triste. Por que fazia aquilo? Por que se deixava arrastar pelos braços pecaminosos? Por que morrer de vontades diante daquilo?
   Fazendo o possível para não acordar seu anfitrião desconhecido, Eric foi até o banheiro para descobrir diante do espelho marcas fundas e roxas que mais pareciam hematomas no seu pescoço. Ele estava mais que acostumado com aquilo quando isso despertava e lhe obrigava a procurar outros homens doentes. Desta vez o que chamou atenção foi um chupão de tamanho e coloração completamente diferentes. Mais parecia um ser vivo pulsando debaixo da sua pele, louco para sair e ganhar vida de vez. Eric se assustou quando ao tocar a marca ela reagiu ao toque, mudando a coloração para um roxo mais claro. Parecia se comunicar com ele, parecia querer exercer algum tipo de influência nefasta sobre sua vida. E ele não ia deixar.
  Tomado por uma ideia absurda mas que ao menos tempo lhe pareceu genial, Eric procurou algo cortante no banheiro. E encontrou uma lâmina de barbear debaixo da pia. O anfitrião se remexeu em seu sono, fazendo Eric cortar o próprio dedo no susto. Ele precisava agir.
   O chupão se encontrava bem abaixo do seu pomo de adão, em um formato quase que oval. Os olhos de Eric brilhavam com um fanatismo cego, certeza brilhante. Ele precisava dar fim aquilo, aquilo que aos poucos lhe estrangulava, lhe esgueirava a essência. Segurando a lâmina na vertical, cedeu a marca um único e limpo corte. Mas não saiu sangue. O que saiu foi uma gosma preta feito a noite, que cheirava mal, e melava o peito de Eric feito piche. Parecia enfim viva, mas já sem forças e morrendo. Descia suas pernas, curiosamente não deixando rastro por onde passava, até sumir pelo ralo.
   Eric se olhou mais uma vez pro espelho e depois de anos se sentia bem. Se sentia limpo, se sentia vivo. Ele nunca saberia explicar o que acabara de acontecer, mas sabia que aquilo jamais retornaria. Porque agora sabia que o que ele era e o que ele representava era perfeitamente normal. Não havia absolutamente nada de errado, jamais ouvera.
  
   Um novo sol despontava no horizonte.
 

domingo, 27 de dezembro de 2015

O Grande Pecado

  Todos já haviam partido, e irremediavelmente só restou eu e você. Após intensos e longos olhares durante a noite inteira, você se aproximou de mim. Retirou o copo da minha mão. Colocou a mão no meu cacete duro. E me beijou. Beijou como se conhecesse cada parte da minha boca. Tua língua era desbravador valente desvendando a selva intocada do meu corpo. Tua mão era força absoluta a manejar meu pênis com tamanha habilidade. E teus olhos eram brasas queimando na noite, esmeraldas polidas a refletir meu desejo.
   Quando finalmente desabotoou a minha calça eu já estava completamente entregue. E delirando, e suando frio contra o lençol imaculado. Este pecado - o grande pecado a corromper os homens - aflorou e veio à tona como algo há muito preso. A linguagem secreta que é proferida durante o ato é esquecida quase que imediatamente, pois os demais mortais jamais devem saber desta nossa conexão.
   Enfim você penetra, despertando coisas que nunca imaginei que existiam. Céu e inferno se combatem agora. Demônios e anjos se engalfinham para assistir o nosso deleite, o nosso pecado, a nossa transgressão. Ensinamentos terrenos caem agora junto com qualquer outro pensamento limitador. O elo enfim se encaixa, o ciclo se completa. O seu êxtase vem de uma forma tão abrupta que me assusto. Mas você me acalma, me consola. E em seus braços despejo inúmeros sorrisos, e abrigo o meu cansaço.

   Mas você quer mais, muito mais. E eu preciso te dar.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Dança dos Mortos

O som que isso faz querendo sair de mim é insuportável. Todos os dias me deparo com barreiras repletas de códigos indecifráveis que me faz analisar criticamente a existência. O conhecimento que tão genuinamente colhi no decorrer dos anos parece um monstro de três cabeças a vigiar meu portão, e espantar os intrusos. Percebo que tenho me tornado tão introspectivo e grosseiro que ando afastando aqueles que tentam me ajudar.

O copo do café morno está diante de mim numa tentativa fútil de revigoração matinal. Aquilo não vai me despertar, aquilo não vai me aquecer. Completo a refeição com lascas de pão dormido com ovos bem feitos e saio para trabalhar, o sol tênue a riscar meu rosto. O ônibus cheio me enoja, o trânsito claustrofóbico me entedia. O prédio empresarial mais parece um castelo de intrigas e jogos, um lugar de penitência e deleite. Parece que os mortos dançam sobre mim, parece que meus superiores me esnobam. Arrasto-me pelos corredores, enclausurado por grilhões financeiros e sociais. Eu não sei para onde iria sem aquilo.

Fruto de uma visão extremamente desorganizada e preguiçosa, ponho a lamentar. Eu preciso sair daqui, digo a mim mesmo. Eu preciso viver a vida que quero, uma vida de puro conhecimento e contemplação. Mas a preguiça me empurra pra baixo com seus braços lodosos, e me obriga a uma rotina exaustiva e angustiante. Quero viver, eu repito. Quero viver um amor.

Atribuo minhas deficiências a uma falta de amor. Um homem que me preencha em todas as lacunas. Os livros de autoajuda falham agora. Os conselhos diligentes dos amigos também caem por terra. Eu só quero me agarrar em braços macios, e fazer amor até dizer basta. Acordar de manhã e sentir que aquilo é real, ter uma razão pra viver além de mesquinharias hipócritas. Os amigos não sabem, a família não sabe. Ninguém sabe o que é isso, acredito eu.


Ao contrário das admoestações do filósofo, o abismo não me contempla de volta. Nem ele me quer, na verdade. 

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Blues

Vem aqui em casa, mas vem rápido. Eu já abri o vinho, já soltei o blues preso dentro de mim. Vem depressa, pois o diabo que está solto em breve voltará para a prisão. O som do contrabaixo a perpetuar sensações orgásticas, o saxofone que afoito rasga a noite. Mas vem amor, eu realmente já abri o vinho. E eu já me abri para você

Quando você vem meu amor, te faço de cobertor. Uma segunda pele sobreposta a minha, me preenchendo nos lugares mais improváveis. A tua língua desbravando meu sexo, teu peito arfando sobre o meu, teu suor escorrendo em gotas tão perfeitas quanto possível. O blues continua, meu amor. Continua a penetrar na nossa carne com destreza e eficácia. Você geme, você morde, você goza. Não sei se é Louis Armstrong ou se é a Ella Fitzgerald, ou os dois juntos. Mas nossas vozes se juntam com as deles, e num coral rouco e perfeito, atingimos um patamar tão magnífico de maestria que não haverá de se repetir.


O vinho pode ter acabado, meu amor. O blues pode estar soando seus últimos acordes. Mas você quer mais, e como um leão ainda faminto, me devora aos pedaços. E eu dou. Dou-me. E você me dá. Abro mais vinho, peço mais blues. E a nossa noite apenas começa. 

domingo, 1 de março de 2015

Não Escreva

Se eu disser que sabia o que queria no começo estaria mentindo. Ninguém sabe, acho. Pois isso vem de uma forma tão devastadora que não temos sequer a oportunidade de pensar, agir e sentir. Isso te toma de assalto, te pega de jeito, te joga na parede.

E para mim foi ainda mais difícil, pois vivia sob as duras garras da igreja. Sentir algo por outro homem que não seja amor fraterno é algo extremamente ruim, e eu sabia disso. Mas eu não podia recusar, eu não podia negar aquilo que eu sabia que mudaria o curso da minha história.

É inútil afirmar um só motivo que acende todo esse pavio. A construção do que você se torna é lenta mas profundamente, como um rio que molda o solo por onde corre.

E não é de se esperar que eu o tenha conhecido em pleno seio pentecostal. Discreto, tímido talvez, um olhar meio baixo como quem fura a tua alma. E justo naquele momento em que encarei aqueles olhos pela primeira vez senti que algo mudou. Lá no fundo do meu ser, do fundo da minha libido, algo explodiu e voou pelos ares fazendo um grande réveillon. Não demorou muito que tudo aquilo ficasse exposto entre a gente, e que nós começássemos a nos encontrar e praticar coisas que até mesmo para “pessoas normais” é considerado indecente.

A forma em que ele me levava ao orgasmo era algo que eu nunca nem nos meus mais ousados pensamentos com mulheres poderia imaginar. A sua perícia, e embora tenha me afirmado que nunca havia transado antes, era de quem há muito desbravava corpos masculinos. Encontrava meu elo escondido, e ali encaixava com força. Por segundos víamos os céus com seus mil querubins, e voltávamos ansiosos para mais uma visita.

Mas descobriram. E vieram com uma fúria em seus olhos que até hoje não acredito. Falaram mal, falaram coisas horríveis, e disseram que nós iriamos arder no inferno. Mas me pergunto até hoje como o amor em toda sua glória e majestade pode arder no inferno. Sim, por mais leviano e rápido que tenha sido aquilo tudo, eu não posso deixar de imaginar outros que passam por situações parecidas. Outros que plenamente amam os seus homens, e eles próprios sendo homens. Rapazes que se beijam às escondidas, aproveitando que a vizinhança cochila na sesta. Jovens que em madrugadas tão ébrias consomem os corpos uns dos outros, amando e fudendo ao som de músicas eróticas. Estes devem ser julgados e mortos por não fé e “justiça divina”, e sim caprichos mundanos? Quantos mais perecerão nas mãos daqueles que provavelmente se queimam internamente pelos mesmos desejos?

Eu sinceramente deveria destruir esse papel, e mais uma vez omitir o já demasiado omitido assunto. Mas não. Com caneta em punho escrevo frenético a minha condenação, já que em breve eles me pegarão. Após que esta lei foi aprovada, nós somos levados como porcos pro abatedouro. Não adianta querer por culpa em alguém, não adianta mais. Pois já ouço o tropel das botas.


Eles chegaram.