quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Quinta-feira

Era preciso sair. Eles não sabiam pra onde, apenas precisam sair. Sair dali, sair daquela rotina estúpida e suja. O que eles necessitavam era de espaço e descanso, de um momento de paz. E então assim foi, ambos pegaram suas carteiras e saíram naquela noite quente de quinta-feira.

Como a quinta-feira é o dia que antecede o fim de semana, há certo burburinho nos bares e vielas. Eles se enveredaram por elas, e em dado momento se afastaram. Cada um foi para um caminho diferente: Um foi para um bar mais boêmio, culto, onde filósofos de botequins e artistas desconhecidos se encontraram para uns tímidos copos de cerveja. E o outro também foi para um bar, mas este era diferente. Era sujo, não tocava música de letras bonitas e sim de letras vulgares. Ali havia um cheiro eterno de urina e álcool, e de gozo. Aquele cheiro, ele notava, era dele também. E quando ambos estavam bem confortáveis em seus respectivos lugares, uma repentina chuva arrebentou nos céus. E foi lavando a cidade, lavando a impureza dos decadentes e dos cultos. E quando eles dois olharam para o céu, lembraram um do outro. Perdidos no coração da cidade vazia.

Quando a quinta virou sexta, aqueles dois estavam no auge de suas embriaguezes etéreas. O primeiro estava numa conversa um tanto confusa sobre a dialética de Hegel. O segundo estava quase surtando, dançando freneticamente com uma qualquer. Cada um entrosado em seu respectivo objetivo. Mas a chuva não parava. Talvez a função daquela chuva fosse lembra-los que tinham um ao outro. E nem mesmo o que aqueles bares ofereciam podiam separá-los. 


Quatro horas da manhã baixou, e o sol despontava pra lá do mar. Os dois estavam fatigados. Voltaram dos seus nichos, que ainda pareciam resistir ao iminente sol. Apenas pensavam em sua cama, pensava um no outro. E quando finalmente se viram, sorriram. Felizes demais. Após um abraço desajeitado, subiram apressados. E nem mesmo o cansaço e a embriaguez o impediram de fazerem amor. Amor, eles fizeram amor. Pois não tinham feito nada de grave durante aquela noite de quinta-feira. E depois ambos dormiram um no braço do outro, enquanto o sol começava a surgir. Era sexta-feira agora. Mais um dia começava. 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Inesquecível

Ela era senhora da noite, dama, duquesa. Seus lábios carnudos beijavam um cigarro, e volta e meia liberavam uma fumaça que se perdia nos confins daquela noite de sábado. Um rapaz, tímido por sinal, estavam do outro lado do bar. Mas ela sabia esperar o momento certo. Pediu mais uma cerveja e pôs a observar o moço. Ele, com uma ice, olhava com cautela pros lados. Ela sorriu. Ela também já fora assim. Mas isso foi há muito tempo atrás, quando ainda não havia provado o gosto amargo da desilusão.

Se as horas passavam, ambos não saberiam dizer. Estavam concentrados demais em seus “afazeres”. Ela, que tinha o apelido de Kenya (e não sabia como explicar a origem), mantenha os olhos fixos no rapaz. Até que determinado momento ele notou que estava sendo observado. Ficou de certa forma petrificado, como que se tivesse levado um choque. E Kenya também ficou chocada, pois ele lembrava o outro. O outro, ele. Felipe. O maldito Felipe.

Por um momento Kenya se sentiu tonta, e quase derrubou o copo. Parecia que o bar começava a movimentar-se num borrão, como se Cronos estivesse fazendo uma brincadeira perversa. Ela não podia acreditar. O moço era igual ao Felipe, até nos detalhes que só ela tinha percebido. Não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo, e rapidamente pediu a conta ao garçom. Tinha que embora o mais rápido possível. O sósia de Felipe continua estático. Parecia que Kenya lhe lembrava alguém. Quando enfim conseguiu sair dali, ela desabou em lágrimas. Esforçava-se, mas não conseguia esquecê-lo. Felipe estava entranhado nela, seu cheiro estava impregnado nela. Ainda tinha algumas roupas suas no guarda-roupa de Kenya. E ela teria que assumir atitudes drásticas.


As meninas até tentaram perguntar o que havia acontecido, mas não obtiveram resultado. Kenya foi até a área de serviço, com todas as roupas dele, e as colocou na pia. E tacou fogo. As meninas observavam atônitas, esperando o pior. E Kenya, que tinha o rosto rubro por causa das chamas, fixava seu olhar para o horizonte. As estrelas decadentes, o céu tosco, a cidade vazia. Mas certo tempo atrás aquilo tudo foram deles. Eles, acima de qualquer coisa, foram um casal feliz. Já fazia um ano, e ela não superava. Pois aquilo era insuperável. Aquilo era imortal. E quando as chamas aquietaram-se, e as meninas a levaram pro quarto, Kenya mantinha um rosto abatido, mas ao mesmo tempo sereno. O mar também fora deles. Hoje não mais. Nem ela era de si mesma. Ela era dele. E ele era seu. Para sempre. 

Saber

Sempre soube daquilo. Sempre. Não houve um momento onde se esquecesse do que era ou aquilo que representava. Aquilo crescia no interior da alma, a espera de um melhor momento para se mostrar. Mas ele sabia, ah sabia... Não podia evitar os olhares discretos, os pensamentos impuros que surgiam quando passavam os rapazes. Ele sempre soube, sempre. Mas nunca tivera a coragem de assumir a existência daquilo.

Então, numa úmida tarde de março, ele não pode mais se conter. Pegou o telefone e ligou para um amigo, perguntando se ele podia vir a sua casa. O amigo disse que podia, desconfiado com tamanha pressa que ele apresentava. Chegou lá meia hora depois, para ser recebido com um beijo repentino. Ele sabia – sempre soubera – que era bissexual e de que aquele amigo também era. Atracavam-se no sofá, aos gemidos e aos sussurros. Conseguiu convencer o amigo. Tiraram as vestes que ainda restavam, e amaram-se ainda mais. Seu amigo era um ótimo passivo. E ele também era. Os dois eram perfeitos um para o outro.

Findo o êxtase, o amigo beijou seu rosto e disse que o amava muito. Disse que queria namorar com ele, que não se importava com o que os outros iriam dizer. Mas ele não queria, pois sabia que as pessoas não aceitariam. Seria melhor se apenas permanecessem daquele jeito, com sexo casual e em datas dispersas. O amigo não aceitava. Deu um último beijo, vestiu as roupas e foi embora.


Ele permaneceu no sofá, deitado e nu. Olhava fixamente para o teto, talvez desejando a reposta. Sabia – ele sempre soubera – que a resposta morava nele, lá no interior da alma. Uma parte dele queria dizer sim, que aceitava o convite de namoro. Outra queria dizer não, que aquilo era perigoso. Ele agora não sabia de nada. Não sabia que caminho trilhar. Não sabia nada, enfim.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Flores

Ela era tão correta e tão bonita, com seus princípios e sua atitude. Nada parecia abalá-la, nem mesmo os dias ruins. Sempre esbanjava alegria e falava com todos, do menino ao velho. Todos gostavam dela. No verão, imitava Gabriela e colocava uma flor na orelha. Felicidade não lhe faltava.

Mas eis que de repente ela parou de sorrir. Passava na rua, cabisbaixa, nem sequer olhando pros vizinhos. Estes estranharam, e ficavam frustrados quando ela não respondia nem mesmo o “bom dia”. Ela não mais usava a flor, ela não mais sorria, ela não mais espalhava alegria.

Enforcada com o lençol foi assim que sua mãe a encontrou. A vizinhança em peso compareceu ao seu velório. Deus, que parecia sofrer também, mandou uma chuva forte e escureceu os céus. As flores pareciam ter murchado. Os pássaros não cantaram naquele dia. Muito se especulou o motivo de sua morte. Ninguém compreendia, e talvez nem quisessem compreender.


Então sua mãe achou uma carta, com a caligrafia da filha. Nela estava escrito o motivo do suicídio. Um amor não correspondido. A mãe, com os olhos vermelhos de tanto chorar, olhou para janela. Num vaso, havia uma flor.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ruído Amargo

00h22: Você tá aí?
00h23: Tô.
00h24: Você quer conversar?
00h27: Porque eu iria querer conversar contigo, depois de tudo que você me fez?
00h28: Porque eu não fiz nada! É mentira deles!
00h30: Olha, não vamos discutir de novo. Vamos ficar de boa, cada um na sua.
00h31: Mas eu te amo...
00h32: Ama nada... A única coisa que você ama é você mesmo. Sempre preocupado nos seus problemas mesquinhos, suas besteiras de adolescente rejeitado. Eu quero que você saia da minha vida, e para sempre.
~visualizado ás 00h33~
00h35: Então tá.

01h00: Por mim eu você permaneceria na minha vida, mas você que se expulsa.
01h01: Acho que não quero ouvir mais nada, me perdoe. Melhor a gente se afastar.
01h03: Acho melhor mesmo.
01h05: Então adeus
01h07: Adeus

01h37: Sempre imaginei quando iria te beijar.
01h40: É, eu também.


Ela e os Fragmentos

Ela tinha sonhos. Confusos, tensos, desconfortáveis. Ela não sabia o que estava acontecendo. Apenas queria que parasse. Ela, tão sentimental. Ela, tão leve. Ela, tão calma. Talvez aqueles sonhos tivessem algum significado, mas eles eram escuros. Tão escuros...
***
Uma grande marca se fez no céu. Profunda, forte, intensa. Ela não sabia decifrá-lo, como seus sonhos. Parecia que tudo tinha que ser complicado pra ela. Parecia que Deus não lhe permitia um momento de paz. Ela queria, acima de tudo, amor. Mas ela encontrava amor? Não. Apenas se interessava por coisas e pessoas impossíveis. Mas ela era tão tola, tão sentimental. Os sentimentos seriam sua morte.
***
Ela gostava dele. Mas ele gostava dela? Ela achava que não. Talvez estivesse errada. Terrivelmente errada...
***
O som dos pássaros não a deixa dormir. Ela sonhava, agora já não dormia. Queria dormir. Queria apagar, nem que fosse por alguns instantes sequer, aquelas marcas. Mas era tão difícil, tão intrínseco a sua alma, que ela estava a ponto de explodir.
***
Por um momento, ela achou que tinha visto uma luz no fim do túnel. Via ele no final. Via ele no seu final. Ela não teria final sem ele.
***
Seu instinto materno afasta as pessoas, ela sabia. Mas aquilo era irrefreável, impossível de ser controlado. Eles iam embora, e ela não fazia nada...
***
Acho que ela não sabia quem era, mas sabia do que não gostava. Feliz aniversário pra ela.
Feliz aniversário pra ela...
Aniversário pra ela...
Pra ela...
Ela...


Admita. Se entregue. Se jogue. Mas você não pode perder tempo, pois você não tem mais tempo pra perder. Mas ele é tão...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Dor

Ele já não sabia mais distinguir o que era sonho e o que era realidade. Apenas sentia o outro. O outro a lhe encher, a lhe complementar, a lhe dizer coisas boas. O outro, e só ele, tinha um poder incrível de persuasão que o deixava estático. O outro se movia com fervor dentro dele, em prazerosos movimentos.

Mas então um dia tudo acabou. O outro desapareceu sem deixar rastros, ou o telefone. E ele padeceu de uma dor surda e cega, como que o seu coração tivesse se retraído para depois explodir. O mundo perdeu a cor, a vida perdeu o sentido e ele se sentiu tonto. A existência a partir dali lhe parecia um borrão, algo indecifrável demais. Ele pôs a caminhar em volta de si mesmo com dificuldade. Respirar era difícil. Viver já lhe era supérfluo. E ele começou a procurar meios de tirar a vida.

O suicídio passou a habitar sua mente, como uma irrecusável oferta. Para o seu desespero, o outro ainda estava ali. Nos livros, nas cadeiras, na sua cama, no seu corpo, no seu eu. Ele percebeu que o outro estava entranhado nele, como duas almas fundidas. O outro, mais que a noção de Deus, lhe explicava o quê de existir. O outro era ele, e ele pensara que ele era o outro.


E então após um dia de intensa agonia sentimental, tomou a tão adiada decisão. Sentou no peitoril da janela, com 20 andares abaixo de pura melancolia urbana. As luzes rasgavam a noite como se esta fosse um fino véu. As estrelas estavam escondidas atrás de enjoadas nuvens. A cidade movimentava-se com o burburinho costumeiro. Ninguém sentiria sua falta. A dor, a dor da perda, era grande demais. E ele já não podia suportar. Atirou-se, com o vento a beijar-lhe a face com ardor. O chão se aproximava assustadoramente, mas ele estava calmo. O outro o esperava. Ele não sabia onde, mas já iria descobrir. Quando ele atingiu o solo, num baque que mais pareceu um tiro, mantinha um sorriso de satisfação. Os curiosos começaram a surgir, e os gritinhos de moças puras e mexericos de velhas fofoqueiras, iriam engolir a dor dele. Ele seria apenas mais uma história de um ser de coração partido, naquela velha cidade. 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

As Coisas Boas da Vida

Eu não tenho respostas. Alias, não sei se tive algum dia. Apenas perguntas que se amontoam no emaranhado que chamo de consciência. Acendo um cigarro, o melhor que posso comprar. Apartamento decrépito, mas eu gosto dele. Aluguei-o quando saí da casa dos meus pais, aos dezoito. Pouco tempo depois o comprei. Ele me faz sentir independente, sei lá. Gosto dele. Livros empilhados num canto, cinzas por toda parte. Um empreguinho de merda, uma vida medíocre. Sim, tudo isso é uma bosta.

Não tenho vontade de sair, e muito menos dinheiro. Então vou pra cama, ler talvez um Sabino ou Fernando Abreu. Eles me fazem bem, as melhores companhias que tenho. Foram eles, nos meus dezesseis anos, que me deram a brilhante ideia de ir morar sozinho. Bom, é legal. Mas há muitos contras. Enfim, não falarei disso. Mas eu não sei do que eu quero falar. Angélica? Não, não é um assunto agradável. O que ela fez? Apenas partiu meu coração. Um coração partido mil vezes.

Éramos apenas conhecidos, um oi rápido na rua. Até que ela passou a frequentar a biblioteca que eu trabalhava. Conversa vai, conversa vem e chamo-a pra sair. Ela aceita e acontece toda aquela história bonita dos filmes. Mas eis que ela vai e me trai, por um cara ligeiramente inferior a mim. Não imaginava que ela chegaria a tanto, mas... Enfim. Não me descabelei ou fui tomar satisfações. Acabei e voltei a tocar-me violentamente por debaixo dos lençóis. E agora, três meses depois, tudo pareceu um sonho. Encontrei-a algumas vezes. Falamo-nos normalmente, sobre algum livro novo e tal. O que mais me preocupa, acredite, é que não senti ou sinto nenhuma tristeza ou decepção. Apenas aceitei os fatos e segui com a vida. Sou muito bom nisso, pelo visto.

As perguntas sem respostas das quais me refiro são sobre outros assuntos. A vida, o universo e tudo mais. E sobre Deus, sociedade, pessoas. Ando ocupando minha mente com esse tipo de coisa, pois minha vida anda tão monótona que não me resta escolha. São questões que nem os grandes filósofos e nem as religiões conseguem responder por completo. Porque eu responderia? Porque eu saberia? Eu, um cara com um empreguinho de merda e uma vida medíocre.


Meu telefone toca. É uma guria interessante que conheci na noite anterior. Ela quer marcar um encontro. Aceito obedientemente. Não tenho nada melhor pra fazer. O jeito é pisar nos cacos do coração, ou aquilo que ainda me resta, e tentar a sorte de novo. Que a vida é cheia de escolhas isso todo mundo sabe. O que a maioria das pessoas desconhece é que as dúvidas e os erros são mais importantes. E que as perguntas são mais importantes que as respostas. E enquanto houver mistérios e coisas interessantes, mulheres afim de relacionamento, aqui estarei eu. Pois uma vida sem essas coisas é uma vida que não vale a pena ser vivida.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Sol se Despedaça

Não havia mais flores. Não tinha mais sorrisos. Lígia era apenas um punhado de mágoas e dores incuráveis. O seu já bagunçado apartamento exalava estranhos odores. As plantas estavam entregues a sorte da natureza, seu gato há muito aprendera a caçar a própria comida. Pois Lígia não agia, não se movimentava. Lígia nem vivia mais.

Ela queria ouvir as batidas do seu coração, aqueles toques ritmados tão conhecidos. Apenas ouvia sonos descompassados, como se ele tivesse desaprendido a bater e tentava pegar o jeito de forma titubeante. Lígia olhou pela janela, mas não via nada por causa das negras cortinas. Num grande esforço, ergue-se do chão e abriu as persianas. Seu primeiro impulso foi proteger os olhos da forte luz que emanava dos céus. Com a vista se acostumando a claridade, percebeu o quão imundo estava seu apartamento. Ela não se importou. Observou a cidade. Recife tirava a sesta revestida de um forte sol de fevereiro. O límpido céu permitia que o sol despejasse seus raios pelos quatro cantos da cidade. A Avenida Conde da Boa Vista parecia cintilar diante de tanto calor. O rio Capibaribe era um tapete de cristais e diamantes. Com exceção das avenidas, as ruas transversais estavam praticamente desertas. Lígia bocejou, perguntando-se quantas horas tinha permanecido incauta em seu abrigo sentimental. Foi a cozinha procurar algo decente pra comer, mas só tinha biscoitos velhos e uma garrafa de suco. Suspirou. Tinha esquecido de fazer compras.

Na verdade não tinha esquecido. Apenas não teve vontade. Não tinha vontade, não tinha mais anseios, não tinha mais desejos... Tudo aquilo ele levara. Tudo aquilo se fora.

Depois de haver comido, fumou um cigarro pra tentar relaxar. Permitiu que o sol invadisse sua casa, expulsando a escuridão pro seu lugar de direito e fazendo visíveis as minúsculas partículas de poeira. Findo o cigarro, decidiu limpar tudo aquilo. Jogou o lixo fora, varreu e passou pano no piso, lavou os pratos e os banheiros, colocou a comida do gato, tentou reviver as plantas. Deixou seu quarto por último. Arrumou a cama, tirou toda sujeira. Então Lígia decidiu mexer em seu guarda-roupa. Era a primeira vez que ela fazia aquilo desde a ida dele. Sentiu-se repentinamente atordoada, recebendo enfim o choque das informações. Pôs então a chorar alto, não se importando com os vizinhos. Porque diabos ele tinha partido? Ela não tinha sido boa o suficiente, dada o suficiente? O coração apertava, o estômago revirava, e ela sentia nojo de si mesma. Fora tola em apaixonar-se por tamanho patife arrogante, fora estúpida em acreditar que daquela vez seria diferente. Mas não fora e nunca seria diferente. No fundo, mas lá no fundo, o amor é previsível. Sabemos que iremos sofrer por ele, sabemos que não teremos recompensas imediatas, sabemos que terminaremos na merda. Mas desistimos? Cogitamos em tentar mudar? Não. Apenas aceitamos isso, pois não temos força contra o amor. Não temos força com nós mesmos.

Lígia queria morrer. Seria tão bom que sua vida fosse sugada por algum ceifador sinistro. Ela queria isso, almejava isso. Deus era brincalhão, não lhe permitia um fim digno. Lígia odiava a si mesma com tanta intensidade, que se cortava com frequência. Aquilo não era sinal de alívio, esperança, tristeza ou qualquer coisa parecida. Aquilo era ódio, puro ódio.


Quando percebeu que a janela do seu quarto ainda estava bloqueada, rapidamente deixou que o sol fizesse seu trabalho. E quando este começou sua dança luminosa, Lígia pode percebeu uma coisa. Pequeninas formas enérgicas de vida saltavam por todo o aposento. Tudo parecia uma coreografia bem ensaiada. Lígia não podia, não queria entender o que era aquilo. Depois de dias, sorriu. Pouco tempo depois também bailava, enfeitiçada pela inebriante chegada da felicidade e do alívio em seu coração. Quando compreendeu que tudo aquilo era ilusão, que tudo o que sentia era apenas uma miragem, concluiu que era inútil sofrer por um amor tão supérfluo. Mas ela estava cansada de pensar naquilo. Rodopiou mais uma vez, e continuou a dançar com aqueles estranhos seres. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O Fim da Ortodoxia

Tão previsível não? Eu sou previsível, eu sei. Mas você é, e não sabe o quanto. Com esse seu jeitinho recatado, dando uma de “cristã fiel” e evangelizando as almas perdidas. Irmã, você nem salvou a sua alma, como você quer salvar as dos outros? Isso só torna você patética. Por Deus, você é muito patética.

Queria um cigarro agora. Acender, tragar e assoprar. Já experimentou? É bom. Ora... Não me venha agora com esse blá blá blá infernal sobre câncer de pulmão e o caralho a quatro. Se eu fumo uma vez, me alerta e me repreende. Se eu bebo um copo de cerveja, bate nas minhas costas e até me incentiva a beber mais. Ah não... Não vai me dizer que você nunca bebeu? Uma taça de espumante no réveillon, ou uma de vinho na ceia? Jesus, como você é careta.

Por falar em Deus, acho que está na hora de você ir para o culto. Não é esse o motivo de não dar antes do casamento? Deus, Igreja, compromisso, purificação, pecado... Isso é só uma ladainha infernal vinda de pessoas que não sabem fazer sexo e pior, não sabem ser felizes. Dizem que é a Bíblia que afirma isso. E eu digo que são os infelizes e impotentes cavalheiros e damas das cúpulas detestáveis das Igrejas que afirmam isso.


É sério, vai embora. Não aguento mais olhar pra essa sua cara de enjoo. As coisas que eu queria dizer eu já disse. Pode ir, mas vai e não volta. Fica lá na sua igrejinha, na sua vida de merda e mediocridade. Creio que você ganha mais. Pois a única coisa que você ganhará por aqui são pulmões fodidos, fígado estragado, merdas feitas em momentos de embriaguez, e decepções e arrependimentos junto com a ressaca. E além do mais, uma vida de ignorância e fé cega num Deus de existência duvidosa me parece ser mais segura. Ou não.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A Onipresente

Agora você vai embora e eu não sei o que fazer,
Ninguém me explicou na escola, ninguém vai me responder.

Educação Sentimental – Kid Abelha


Ventos criam uivos sinistros nas frestas, mas não me importo. A chuva começa a cair, molhando a cortina, mas também não me importo. O que me importa não se importa comigo. Ela foi embora e deixou um pedaço de si mesma na casa. Seu perfume está impregnado em tudo. Algumas roupas ainda estavam ali, para minha tortura. Pegava-me cheirando-as, desejando intensamente que sua dona ali estivesse. O que realmente tinha ocasionado sua ida não estava definido e talvez nunca seja. Aonde quer que eu olhe, nos quadros, nos retratos, na cozinha, no banheiro, no quarto, a via, exalando sua beleza para quem quisesse ver e sentir.

Com uma xícara de café como companhia, volto a lembrar de momentos alegres desfrutados ao seu lado. A primeira vez que saímos juntos, nosso primeiro beijo, nossa primeira noite... Tudo voltava num confuso emaranhado, como uma onda forte que bate e derruba.

Quando percebi, lágrimas quentes brotavam-me dos olhos. E elas foram caindo no café. Comecei a observar seu trajeto, e logo em seguida bebi o líquido. Minhas lágrimas amargaram a bebida, deixando-a intragável. Ou talvez seja meu próprio paladar, que talvez também tenha me abandonado.


Segui-me então para o quarto, sentando próximo a janela. A chuva já estava forte, batendo com força no vidro. Não podia ver a rua por completo, pois a chuva não deixava. E era assim que eu estava: embaçado, cego. Já não a tinha e não sabia o que ia fazer. Meu Deus, como a fui perder? Nosso amor, tão forte e inabalável, tinha acabado por motivos fúteis. Esfreguei o rosto com as mãos, a fim de espantar aquele pensamento. Impossível. A sua imagem estava fixada em minha mente. Podia sentir seu hálito, seu corpo em atrito com o meu, seu rosto amassado de manhã, um sorriso estampado. Voltei a chorar, dessa vez com mais intensidade. E de repente gritei, gritei até minha voz fraquejar. Gritei desesperadamente seu nome, implorando para que voltasse. Nada aconteceu. Então enxuguei as lágrimas e voltei a observar a chuva, que impiedosa batia em minha janela. 

Degraus Invisíveis

Claro como o dia, o desejo surge. E ele vai se apoderando da minha consciência de tal forma, que é quase impossível contê-lo. Fico furioso com isso. Detesto ser manipulado, independente do que seja. Mas parece que o desejo (que, acredite, parece ter vida própria) não quer saber o que acho. Logo, logo ele ia querer ser posto em prática e isso acarretaria riscos. Tento inutilmente lutar contra ele, só que ela é mais forte do que eu.

Subo o lance de escadas devagar. Dezoito anos e pareço ter quarenta. Com meu apartamento tão longe e eu tão cansado, me sento na metade do percurso. Tateio na bolsa o maço de cigarros, mas não encontro. Tombei com um pacote de biscoitos pela metade, que deveria ter sido meu almoço. Agora que percebo que estou com uma fome imensa. Então o desejo volta com força, como um tiro disparado de lugar algum. Apodera-se de mim com tamanha fúria, que sinceramente penso em estar sendo possuído ou algo do tipo. O biscoito rapidamente acabou, mas estava com preguiça de levantar. Finalmente encontro o maço. A fumaça sobe pelo ar, criando uma atmosfera estranha naquela penumbra de começo de noite.

Mas o desejo... Esse não tarda em atormentar. Preparava-me para retomar a subida, quando ele volta a dar o ar de sua graça. Quero resistir, quero lutar, mas é sua força é incomparável.

Chego ao apartamento, cansado e enfadado daquilo. Troco de roupa, tomo um banho, janto. Essas coisas momentaneamente ocupam minha mente, mas lá vem ele de novo. Vencido, pego o telefone. Então a partir deste momento eu não fui eu. Apenas lembro ligar pra ele, marco um encontro. Lembro-me de colocar uma roupa com desleixo, e sair rua afora. Lembro-me de vê-lo, tomar uma cerveja, conversar futilidades. Lembro-me da sua mão ousada pela minha coxa, e a minha pela dele. Do seu pênis ereto na calça apertada, e o meu também. Lembro-me de termos ido a algum lugar escuro, e lá consumar o ato. Lembro-me de seu chamado insistente para ir a sua casa. Depois disso, são apenas borrões.


Voltei a ser eu quando abria a porta do apartamento, com os primeiros raios de sol a entrar pelas janelas e frestas. Um banho rápido e me jogo na cama. Não tinha espelho próximo, mas eu sentia que via a mim mesmo ao meu lado na cama. Enfim o desejo estava consumado. No fundo, gostava daquela embriaguez. Do lapso significativo da memória, aonde assumo uma personalidade desconhecida. Ou talvez seja o meu eu mais íntimo em seu momento de liberdade. Pego no sono. Sonhei que subia lances e mais lances de escada. Mas não via essas escadas. Só havia uma luz difusa no topo. Eu não me lembro de ter chegado lá, pois acordei de repente. Eram mais de meio-dia, e sentia que o desejo não tardaria em voltar.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Apreciadores de Morangos

Finalmente eu tinha paz. Mas era uma paz estranha, quase que aterrorizante. Depois de tantas brigas, umas tolas outras não, alcançávamos a tranquilidade. Mas é tudo tão estranho... Podemos nos gabar da liberdade que existia no nosso relacionamento, sim. Só que incrivelmente a liberdade nos pareceu sufocadora. Ou melhor, aquilo que vivíamos era sufocador.

Quando eu te vi fechar a porta, tive a impressão de que as coisas ficariam bem. Notava que enfim estaríamos felizes, verdadeiramente. Fui à janela, vi você apressada indo para o metrô. A cidade te engolia, como uma boca que devora impiedosamente morangos. Alias, são morangos que me nutrem nestes dias. Morangos puros, morangos em leite condensado. Não sei se faz mal, mas sinceramente não me importo.

Tolamente acredito seja você quando alguém bate na porta. Espero seu retorno, pois tenho a certeza que você voltará. Fique ciente de que troquei muitas coisas, principalmente as convicções. E quando você bater a porta meu bem, estarei tão farto de morangos que nem posso imaginar minha reação ao te ver com um pacote deles na mão. Morango era nossa fruta preferida. Ou é?


Viu? Sabia que você voltaria. Lamento, não posso lhe dar mais atenção ou amor. Quer um café? Chá? Morangos? Ou apenas aquelas velhas hipocrisias de sempre? Perdoe-me meu bem, eu sei o que ofereço é medíocre. Mas não tenho coisa melhor. Ora, já vai? Nem vai ficar para o cafezinho? Pena. Pega ali minha agenda. Vou te dar um número. Ligue, e talvez a pessoa que te atenda seja mais interessante do que eu. Talvez te agrade mais, até talvez tenha outra fruta preferida. Talvez não. E aí você volta. Veremos se terei condições de te amar novamente. Qualquer coisa, você pode me encontrar na seção de frutas do supermercado. Eu serei o cara apreciando morangos.

Pintura de Pessoas Felizes

A cortina não deixava entrar a luz do sol no quarto. Caio estava deitado havia horas, sem chegar a nenhuma conclusão sobre como resolver sua vida. Suas desilusões amorosas tinham massacrado tanto seu coração, que Caio passava não sentir nenhum sentimento ligado ao amor ou a afeição. Máculas, borrões, manchas, cortes... Sua alma parecia um retalho, um pano velho, que de costurado tantas e tantas vezes era impossível de dizer qual era sua forma original. Caio vagarosamente se levantou e foi espiar pela janela. As pessoas caminhavam apressadas, ocupadas demais com suas vidas, ignorantes aos assuntos sentimentais. O sol fazia seu trajeto ao crepúsculo, criando um clima agradável nas ruas arborizadas e nas praças verdejantes. Animou-se com a ideia, e vestiu-se para uma caminhada.

Arrependeu-se nos primeiros dez minutos. Todas aquelas pessoas pareciam felizes demais para o seu gosto. Talvez estivessem fingindo, talvez não. O que importa é que elas estavam sorrindo, brincando como se a vida não além fosse de felicidade e sorrisos bobos.

- Mas estão certas... – murmurou Caio – Eu devia estar sorrindo ao invés de chorando.

Quando percebeu que estava falando consigo mesmo, sorriu pela primeira vez em dias. Estou ficando louco. Maldita fora a hora em que deixou que tais problemas tomassem conta de sua vida. Fora fraco, estúpido, incapaz de lidar com as mais banais dificuldades. Mas ele via o lado positivo. Tinha amadurecido bastante nesse meio tempo, pensando em coisas nunca antes cogitadas. Era surpreendente até. Nunca fora uma pessoa desinformada, pelo contrário. Gostava de ler e de saber sobre diversas coisas. Mas era inegável que esse seu dilema o estava transformando em um novo homem. Homem esse capaz de novos desafios e tristezas, capaz de ter controle suficiente sobre seus sentimentos.


Caio se levantou do banco que estava sentado e foi comprar uma pipoca. Há tempos não comia uma pipoca de praça. Não sabia se foi a pipoca ou se foi alguma outra coisa, mas algo aconteceu. Caio voltou a notar a felicidade daquelas pessoas. Pássaros assobiavam nos seus poleiros. Casais namoravam abaixo desses poleiros, curtindo a companhia um do outro. Mamães levavam seus filhos para uma caminhada, sorrindo toda vez que uma das crianças apontava extasiada para alguma coisa perguntando o que era. Até no sorriso torto do pipoqueiro havia beleza. Caio percebeu que também estava feliz, seus problemas eram irrelevantes agora. A impressão que tinha era que aquela paisagem era uma pintura, e uma pintura digna de ser apreciada com todo o carinho. Voltou a se sentar, para poder comer sua pipoca com todo o conforto e com toda a felicidade do mundo. Sabia que seus problemas não se dissipariam com facilidade. Mas realmente não interessava agora. Ele apenas queria fazer parte daquela pintura de pessoas felizes, intocada na selva de tristeza que era a sociedade.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Tinta Fresca

“Ah meu amor... Como eu queria te ter agora nos meus braços. Acariciar estes teus cabelos negros como a noite, afagar essa tua pele morena. A noite chega e a minha tortura também. Como poderei eu viver longe da tua presença? Que sentido haverá na minha existência sem ti?” 

Ele repousou a caneta próxima ao caderno. A tinta fresca brilhava sob a forte luz da lâmpada. Encostou as mãos no papel, como se quisesse sentir as palavras que há pouco escrevera.  Cada letra era a marca de seu sofrimento. Pobre poeta... Vivia de sua fértil imaginação. Sua amada talvez não lesse aquele pedaço de infortúnio, mas não importava. Olhou novamente paras as palavras, agora secas, e voltou a escrever:

“Não haveria maior deleite se tu estivesses em meu lado, como minha esposa.”

Parou. E de repente, pôs a chorar. Com violência arremessou o caderno pra longe. De nada serviria aquilo. Nunca teria seu amor. Então foi na cômoda, pegar sua arma. Voltou a se sentar, e lentamente colocou o revólver embaixo do seu queixo. Era isso, sua patética vida terminaria assim. Olhou pra lua, que já estava em seu ápice. Ela sempre fora sua única companheira, nunca o tinha desamparado. Tentou esboçar um sorriso, mas estava infeliz demais pra isso. Olhou mais uma vez para o caderno, para o poema. Ele fora tolo em acreditar que ela lhe amaria algum dia. Escrevera pra ela, somente ela, e agora morreria sem ver o desejo do seu coração se cumprir. Voltou a chorar, dessa vez mais calmamente. Observou a arma que brilhava sinistramente a luz do luar. Fechou os olhos, e puxou o gatilho.

Naquele mesma noite, uma moça morena e de cabelos negros também se mataria. Os mais íntimos diriam que a causa foi um amor não correspondido.



Absalão

A tarde arrastava-se lentamente ao clima do mês de agosto. Cícero estava sentado com as pernas cruzadas no chão do seu apartamento, fumando um cigarro. Olhava a paisagem, manchada pelas chaminés das fábricas. Manchado também estava seu pulmão. Fumava muito ultimamente, e já nem ligava. Mal bebia, pois não tinha com quem beber. Ao contrário do cigarro, acreditava que tinha que se dividir o álcool. Seu gato, chamado Absalão, se esfregou em suas pernas. Cícero sorriu, e começou a acariciar o bicho. Ele desejava em alguns momentos ser Absalão. Não ter responsabilidades nenhuma, ter liberdade de subir nos telhados. A única preocupação de Absalão talvez fosse os ratos e os cães. Ou não. Talvez o gato tivesse uma vida também, de amargura igual ao seu dono. Na verdade Cícero não acreditava ser realmente dono de Absalão, dada a audácia e a liberdade que o animal parecia emanar.

Absalão viu um rato atravessando a sala e pôs a persegui-lo. Cícero se levantou, com o cigarro em punho, e foi à janela. O sol há muito se escondera por detrás dos prédios. Cícero não mais podia aguentar. Foi se inclinando, e então colocou uma perna para fora. Morava no décimo andar, uma queda fatal. Jogou a outra perna e sentou-se. Terminaria seu cigarro ali, á beira de sua morte. Voltou a se lembrar dos problemas, das dividas, dos amores. Havia deixado o saco de ração aberto na cozinha, Absalão não morreria de fome.

Enfim concluiu o cigarro. Jogou a bituca. Viu-a desaparecer por entre a escuridão da então noite que chegava. Olhou dentro do apartamento, procurando Absalão. Não o achou. Devia estar aproveitando o rato. Gato esperto aquele. Talvez Absalão seja a única coisa boa que acontecera na vida de Cícero. Lágrimas caíam pelas bochechas, indo perder-se na vastidão que abaixo estava. Mais uma vez voltou a procurar o gato, não encontrando. Não podia mais esperar. Olhou para os prédios, para o céu, para o fim do dia. Então Cícero se jogou, de braços abertos, a fim de agarrar sua morte. Descia rápido, sentia o vento lamber sua face. Fechou os olhos, e esperou o fim.

Cícero não percebera, mas ocorria um evento em sua rua aonde havia várias tendas grandes de plástico. Caiu em cima de uma delas. A armação aguentou por um curto período de tempo, o suficiente para amortecer a queda. Então cedeu, caindo sobre não sei quê que havia embaixo. Cícero bateu a cabeça em algo, e por um momento viu tudo mudar, girar e piscar. Antes de perder a consciência podia jurar que Absalão estava na rua, próximo ao seu dono, com uma expressão de quem se pergunta o porquê de se matar por motivos tão fúteis.


sábado, 5 de outubro de 2013

Visão

A voz de Renato preenche o quarto. Ele é a minha única companhia agora, a melhor. Ele cantava quando você cruzou aquela porta com a frase nos lábios: ”Não volto nunca mais. Adeus.”. Até parece que você ainda está ali, congelada no tempo, a repetir essa maldita frase. Alias, você que é maldita. Eu acreditei, na minha tola ingenuidade, que você me amava. Fazíamos tantos planos, tínhamos tantas ideias... Doce engano.

“Lembra que o plano erámos ficarmos bem”. Renato nos lembra. Mas não ficamos bem, e temo que nunca fiquemos bem. E isso é escolha sua. Como pode ser tão vaca, tão maldosa? Por Deus, estávamos indo tão bem. Adeus. Sua voz não sai da minha cabeça, não para de repetir. A visão de você indo embora, de malas na mão, vai me atormentar por muito tempo.

Eu queria sair, mas estou sem dinheiro. E todos meus amigos estão procurando emprego. Eu queria me divertir, esquecer-se dessa noite, ter um lugar legal pra ir. Mas não consigo pensar em outra coisa. Não tenho mais cigarros, não tenho mais bebidas, só a voz de Renato a repetir meu lamento. A lista acaba e eu reinicio. É só o que me resta.

Até pensaria duas vezes se você decidisse ficar. Esqueceria nossa fútil discussão, e voltaríamos a ser como éramos antes.  Mas você deixou clara a sua decisão. E eu devo respeitá-la. Na estante, a discografia da Legião completa. Da rebeldia a depressão. O que Renato faria? O que Renato diria? Sua voz, cantando as infelicidades de V, me parece dar a resposta. Eu que sou burro em não perceber. Mas aposto que se você estivesse aqui, saberia me responder. Alias, se você estivesse aqui, nada disso estaria acontecendo. Olho para o céu, nos tons carmesins do crepúsculo, e continuo sem entender. Renato parece insistir em me dar a reposta. Então finalmente eu percebo. Mas também percebo que é terrivelmente tarde pra qualquer coisa.


Pássaros em Queda

“Beije-me, beije-me como se fosse a última vez”
Ingrid Bergman, no filme Casablanca

Não sabíamos definir o que éramos. Na verdade, nem queríamos isso. Estava tão bom assim, sem nada certo ou verdadeiro. Deixava-nos levar pelas ondas do tempo, não se preocupando onde iriamos desaguar.
O conforto era mútuo, tristeza não havia. Víamo-nos quando convinha, beijava-nos quando era a hora, transávamos quando era adequado.

A liberdade daquilo era assustadora. Ficávamos com outras pessoas, e algumas vezes tentávamos iniciar um relacionamento com elas. Mas não adiantava. Estávamos embriagados um pelo outro, mesmo que negássemos isso. Jogávamos um tipo de jogo, desconhecido por muitos, no qual nenhum dos dois lados perdia. Só lucrava, só ganhava, e isso era incrível.

Ríamos por qualquer besteira, nos divertíamos juntos, almoçava na casa do outro como mero amigo. Ninguém sabia daquilo, nem mesmo os amigos mais íntimos, que pelo correto deveriam saber.
Então numa noite as coisas mudaram.

Cheguei do trabalho, mortalmente cansado. Pensava em jantar, tomar um banho e propor um filme debaixo das cobertas. Até tinha escolhido um: Casablanca.

Abri a porta de entrada, e estranhei o apartamento estar às escuras. Tateei pelas paredes em busca do interruptor. Quando a luz acendeu notei que a sala estava vazia, mas do quarto provinha certa luz. Dirigi-me pra lá, e abri a porta.

Seu corpo estava estirado na cama, nu como veio ao mundo, sobreposto a outro. Agitava-se loucamente, como que suas vidas dependessem de terem que atingir o orgasmo. Pararam ao notar minha presença, que sorrateiramente não foi sentida uns segundos atrás. Respiraram, e me disse numa voz ousada:

- Quer participar?

De antemão, digo que sou adepto a tais aventuras no mundo do sexo. Mas aquela noite não, eu não tinha disposição sequer pra um quem dera dois.

Suspirei e disse numa voz um tanto irritada:
- Por favor, tantas noites e vocês escolhem justo essa? Planejava algo especial.

O outro, assustado com a minha chegada, foi pegando suas roupas que estavam espalhadas no quarto.

- Não, não precisa temer. Não temos um relacionamento convencional.
- Sério? – De um tom ousado, sua voz foi pra desafio – Tantos meses e você diz que não temos nada?
- Ué, e temos? – Fiz um ar de desentendido – Ninguém me disse.

Mesmo com meu aviso a pessoa partiu mal se despedindo. Enfim estávamos a sós. Nem demos por falta.

- Pensei... Pensei que tínhamos algo especial. – Parecia que ia desabar em choro a qualquer momento.
- E temos. Mas achava que nosso acordo era não ter nenhum relacionamento sério.
- Mesmo assim...
- Veja bem – larguei a bolsa no canto e me sentei ao seu lado – Se você realmente se importasse com isso, não me estaria “traindo”. O único trato era o uso de camisinha, e espero que você tenha cumprido isso.
- Não se preocupe com isso – e apontou o preservativo usado ao lado da cama. – Eu... Eu não quis fazer isso, acredite. Encontramo-nos no shopping, surgiu um clima, conversamos e então...
Sorri e disse num tom afável
- Não se culpe, eu não estou te repreendendo. Você é livre para fazer o que quiser. Nunca exigi nada.
Ele parou por uns instantes, absorto em seus pensamentos. E disse lamuriento:
- Não posso mais continuar com isso, não posso. Eu tento, mas não dá mais...
Foi a primeira vez que fiquei surpreso naquela situação toda. E de surpresa passava para a decepção, e eu sabia que passaria para tristeza em breve. Não tínhamos nada firme, mas eu nutria sentimentos. Rapidamente retomei as rédeas.
- Acho que te entendo... Nem todos estão preparados. Inclusive eu.
E então desatou a chorar, e recostou a cabeça no meu ombro. Acariciei seus cabelos e disse, tentando passar confiança:
- Vamos... Está tudo bem. Trouxe um filme para vermos.
- Qual? – enxugava as lágrimas com as costas das mãos.
- Casablanca.

Sorriu, e concordou. Eu disse que tomaria banho, e que ele fosse colocando o filme.

Abraçados no sofá, sentíamos a força que emanava daquela película antiga. Os protagonistas tinham uma incrível sintonia, e até ouso dizer que parecíamos com eles. Aprumou-se nos meus braços e me beijou. Ali havia um quê de despedida, algo que se esvaía. E foi no justo momento que os protagonistas se beijavam. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O Dragão da Meia-Noite

Só faltava um maço de cigarros, pois o resto estava ali. Sua angústia, sua fome por vomitar lamentos, bebidas... Tudo ele já tinha. Só restava o maldito cigarro que ele não encontrava em local algum. Saiu titubeante pelas ruas do centro, meia-noite, com dinheiro em punho. Pouco lhe importava os assaltantes, pouco lhe importava o que seus pais e os vizinhos diriam. Chegara o tempo de queimar, queimar o pouco de pureza que ainda lhe restava.

Por sorte encontrou um lugar que ainda permanecia aberto. Comprou logo dois maços, pois sabia que aquilo iria consumir bastante fumo. Voltava pra casa em marcha ainda mais lenta. Ele era o único da família que tinha aquilo, sabia disso. Os seus familiares sabiam, mas disfarçavam. Não queria que as pessoas soubessem que o filho mais novo tinha aquilo.

Ao chegar ao portão de casa, e a mesma já escura, tomou uma decisão no mínimo repentina. Deu meia volta e foi se enveredar pelos becos mal afamados do centro. Abriu um maço e pôs a fumar. Até chegar o seu destino, ele fumara a metade do maço.

A luz do beco praticamente era inexistente. A lua era a maior lâmpada. Sentia um cheiro de suor, cheiro de homem, e de maconha e de sêmen. Havia tantos deles... Homens se amotinando uns em cima dos outros, beijando-se e acariciando-se, pondo mãos em lugares secretos. Ele baixou a cabeça em renúncia a assovios e chamados obscenos. Apenas volta e meia olhava ao redor, procurando o mais interessante deles. Mas ao mesmo tempo ele estava confuso, tímido e queria sair dali o mais rápido possível. Só que ele tinha que fazer aquilo. Tinha que ser feito.

Após doses de uma bebida forte, o loiro o colocou de bruços. E o penetrou tão forte que ele pôs a mão na boca, a fim de não gritar e chamar atenção. O outro o chamava de “viado, bicha, puto” e enfiava seu pau nele, cada vez mais forte. E ele, ao mesmo tempo em que queria gritar, gemia feito um vadio. Quase uivava de tanto prazer que aquilo lhe dava. E quando o esperma do outro escorreu perna abaixo, ele se levantou tão repentinamente como veio e partiu. 


Agora, com o sol despontando no horizonte, ele chora. Arrepende-se tanto de fazer aquelas coisas... Mas aquilo era tão forte e tentador, tão insuportavelmente delicioso, que ele se permitia uma vez mais. Sua família sabia que ele tinha aquilo. Ignoravam esperando que um dia pudesse acabar, que ele enfim saciasse sua fome devassa. Mas ele sabia que aquilo nunca iria morrer. E quando o sol jogou seus raios quarto adentro, encontro-o numa poça de sangue escarlate. Talvez Deus, aquele Deus da igreja de sua infância, o perdoasse. Que sua família, tão ortodoxa, o perdoasse. Que os prostitutos das vielas, que tanto sentiriam sua falta, o perdoasse. Pois ele, em sua tamanha devassidão, não se perdoava. E nunca se perdoaria. 

Pulmão e Fígado

Por questões de respeito, não irei fumar perto de você. Eu sei o quanto você odeia cigarro. Então me deixe levantar-me dessa cadeira bamba e ir à janela, tragar esse veneno. Mas você bebe, e muito. Traga aqui essa vodca pela metade, temos muito que conversar.

Tempos tumultuados não? Nesse festim maldito de tecnologia e globalização, nós perdermos a essência. Até bem pouco tempo, éramos capazes de amar e sermos amados. Hoje, por causa dos aparelhos eletrônicos, creio eu, nos distanciamos uns dos outros. Os seres humanos não são mais os mesmos e até um cego vê. Mas não desviemos do alvo: eu e você. Uma tediante retrospectiva? Não, melhor não. Ok então, passemos então para o ponto crucial. Esse maldito desgaste que assolou nosso relacionamento.

Quando éramos crianças de verão, como diria o bom e velho Martin, acreditávamos no amor eterno. A primeira vez que te vi entrando pela porta daquela sala barulhenta, senti algo muito forte. Você se aproximou, ficamos amigos, não tardou para que a gente começasse a namorar. Aí você decide morar comigo (excelente ideia na época) e a premissa seria de um lindo e jovem casal, sem filhos e cheios de libido, morando no apartamento confortável. Bom, lógico que isso não aconteceu. Deus adora pregar peças. Depois de um curto tempo, a rotina bateu na nossa porta. O trabalho tomou conta de nossas vidas de uma forma que nós não tínhamos tempo nem para nós mesmos. O sexo caiu na mesmice, as contas se multiplicaram, nós engordamos. Outrora felizes, magros e viris, agora gordos, infelizes e brochas. Começamos a discutir com frequência, você fazendo birra por motivos banais, eu sem o menor pingo de paciência. O pior iria acontecer, mais cedo ou mais tarde: Nós terminamos.

Agora cá estamos. Eu com meu pulmão estragado, você seu fígado. Ambos flácidos e fatigados, desesperados por uma boa notícia. Um novo amor quem sabe. Não temos soluções pra isso, o fim é inevitável. Eu permaneço aqui, e você volta pra puta que pariu. Pegue suas coisas e vai. Posso estar sendo um tremendo canalha te expulsando assim, como um cão sardento. Mas já não aguento. E creio que nem você. Sejamos amigos então. Marcar um sábado desses e tomar uma cerveja, jogar conversa fora. Sinceramente não espero que viremos inimigos.

Quer uma ajuda com as coisas? Bom, terminemos a vodca. A noite ainda é um recém-nascido. Vamos fazer uma retrospectiva chata? É o que ainda nos resta.


Chamei um táxi para você. Beijo na bochecha é estranho né? Enfim, siga seu rumo e que o Nosso Senhor Jesus Cristo lhe abençoe e lhe guarde. O que eu irei fazer? Bom, continuarei bebendo, fumando, lendo e escrevendo. É o melhor que sei fazer.  É o melhor que sabemos fazer. Pois de relacionamentos provamos sermos uns zeros à esquerda. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

No Interior do Norte


Quarta, 2 de outubro

Eu talvez não tenha as respostas que ela procura. Talvez apenas ela esteja procurando um ombro amigo, onde poderia confiar seus lances obscuras. Ela sabe que eu não me impressiono fácil. Ela sabe que me pode dizer suas noites de êxtase. Mas existe um segredo aí, algo podre demais a ser dito.
Se após tantas cervejas e caipirinhas ela não confessar isso, ficarei desapontado. Acho que não passo confiança. Sou eu o maior incentivador dessa sua maior loucura. O único, a saber, de tal delírio. Mas ela não confia em mim. Eu sinto isso. Eu vejo isso.

E quando a chuva cair tão impiedosa nesta capital, eu lhe direi o quão a estimo. Mas não há nada de sexual aí. Só quero que ela sinta que estou sendo eu. Que enfim encontrei alguém que não me desapontarei. Alguém que, enfim, amo essa amizade com todo o coração.

Hermes ergueu-se do sofá, e tentou esboçar um sorriso. Para quê, ou para quem, ele não sabia.
Do outro lado da cidade, Mel pôs a pensar. Pensar que talvez Hermes não fosse tão estúpido assim. E então ela pôs sorrir. E ela sabia, ao menos, para quê.


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Cicatrizes

Oh meu bem, os dias de felicidade plena se foram com tua ida. Os cortes em meus braços se abrem toda que vez que penso em você, em quão felizes éramos.

A dor invade o meu ser. A DOR INVADE O MEU SER. A DOR IN-VA-DE O MEU SER.

Onde está você meu amor? Apareça meu amor. A faca está brilhando sinistramente, como se me tentasse...

Na primeira vez, não foi fundo o suficiente.
Na segunda vez, foi razoavelmente fundo.
Na terceira vez, atingiu enfim a minha veia.

O sangue está saindo aos borbotões. Está manchando o papel. Onde está você meu amor?
Não sei como tenho força suficiente para continuar a escrever, mas sei que logo perderei a consciência.
                                                                     



Há dois dias acordei no hospital. Você não veio me visitar. Não importa o quão ridículo foi meu ato, mas custa se importar? Agora vejo que fui tolo por me apaixonar por alguém tão tosco e tão pobre de espírito como você.

Já estou em casa há dois dias, e você ainda não veio me visitar. Melhor assim.
Olha que interessante. Um pássaro fez seu ninho na minha janela, não mais na nossa janela.
Os cortes estão se cicatrizando, e temo que fiquem marcas. As marcas que me refiro são aquelas ocultas no lugar que só você tinha permissão.

Um mês, e você mal falou comigo. Que triste não? Não, talvez não seja mais tão triste assim.
As feridas ainda pulsam e a dor ainda permanece, mas enfim trunfo sobre loucura e na angústia, pondo fim ao reinado do amor.


Ausência

Ela não sabia identificar qual sentimento sentia naquele momento. O caixão do seu esposo descia lentamente para cova, e ela olhava indiferente. No decorrer das horas, várias pessoas vieram lhe falar, mostrar que sentiam muito, que ele era um bom homem. Gente falsa. Não conhecia metade daquelas pessoas. Amigos apareciam e falavam as mesmas coisas. Ela fingia concordar, fingia aceitar, e novamente olhava para o caixão.

No velório, viu a face de um homem completamente diferente. Trajava um bonito terno, e tinha os cabelos penteados. Flores estavam em volta do morto, dando um toque estranhamente engraçado. Mas ela não chorava. Queria chorar, mas não conseguia. Para mostrar que estava triste, ficou um bom tempo ao lado do marido, alisando suavemente sua testa. O corpo estava gelado. O do seu amor era quente. Os lábios estavam ficando roxos, outrora rosados e cheios de vida. Afastou-se e se deixou rodear pelos familiares. E ela só olhava, ora pro defunto, ora pro vazio. Sentia tristeza sim, mas sentia algo maior. Apostava na indiferença. O que mais podia ser? Não conseguia sequer derramar uma lágrima. O esposo fora um homem alegre, falava com todos, não tinha intriga com ninguém. Nunca gostou de ver a esposa triste. Foi com esse pensamento que ela esboçou um tímido sorriso.


Agora, com o caixão já sendo coberto, é que ela se permitiu uma lágrima. Lágrima que se perdeu nas escuras areias. Não sabia explicar o porquê de tanta frieza com seu amor. Ele fora um bom marido, bom amigo, bom amante. O que ela sentia naquele momento, pensou mais tarde, era irrelevante. Seu marido estava morto, e não faria a menor diferença a quantidade de pranto ali derramada. Ele não voltaria. 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Em Transe


Não sei mais o que dizer e nem o que pensar
Os Anjos – Legião Urbana

Eu só queria um pouco de amor da sua parte. Atenção serviria, uma ponta de concentração qualquer. Mas você me ignora de uma forma ridicularmente visível. O que você quer que eu faça? Quer que eu exponha ainda mais meus sentimentos? Não sei se isso ainda é possível, dado o tamanho da liberdade que lhe dei. E o que você fez com essa liberdade? Brincou com meus sentimentos. Alias, ainda brinca. E sou tão tolo em permitir isso.

Não estou te amando, isso tenho certeza. É só uma vontade quase que indescritível de me jogar em seus braços toda vez que te vejo. Esses lábios finos que abriga um sorriso malicioso, que me cativam de uma forma perversamente humilhante. São essas mãos habilidosas que varrem o meu corpo, que me faz convergir pra você. Maldito seja, maldito seja essa tua lábia de chantagista. Chantagista de sentimentos.
Chega de tamanha frustração. Devo colocar um basta neste teu controle assustador sobre a minha vida. Mas admito: Eu não quero isso. Quero me queimar neste inferno de carnalidade e obscenidades noturnas. É masoquista, mas fazer o que? Nunca passei por isso, nunca tive alguém a me desejar tão furiosamente como você me deseja. 

Eu tenho tanto medo... Medo de que você me largue de repente, de enfim considerar que sou mera distração. Imagino tantas coisas que nós poderíamos fazer juntos. Mas eu sei que não é possível.
Sabia que nós podíamos ser felizes? Como um casal comum, que pensa em ter uma vida saudável ao lado do companheiro. Mas porque você não pensa o mesmo? Porque você não assume esse risco logo de uma vez? O que você tem a perder? Sou o único aqui que está se importando. O único a te desejar imensamente, bem mais do que você me deseja.


Veja o sol que se põe. Veja as gaivotas que decoram o horizonte. Tão belo, e tão puro. Nosso lance é tão belo, mas é tão mortífero. Tão destrutivo, tão instável. Queria café agora. E estou te querendo agora, e de uma forma adoravelmente excitante. 

Da Existência do Tolo Apaixonado



Havia muros. Tinham grades e arames farpados. Guardas armados até os dentes, prontos a matar qualquer um que ousasse se aproximar. No meio disso tudo tinha um prédio, igualmente bem vigiado e protegido. Lá dentro, depois de infinitas portas codificadas e alçapões bem fechados, existia uma sala. E nesta sala tinha uma caixa. E finalmente dentro dessa caixa, tinha meu coração calejado a pulsar.

Você tinha todas as chaves, todos os códigos, todos os acessos. Você pulava os muros sem dificuldades alguma, você cortava os arames sem nenhum problema. Era camarada dos guardas, que te deixavam passar. Foi você, e só você, o primeiro e único a fazer isso com tamanha perícia. A sua habilidade invejável, seus discursos de amor inflamados, seus métodos não tão convencionais de conquista... Tudo isso contribuíra para a entrega condicional do meu eu. Sim, eu me joguei de uma forma tão abrupta nisso tudo, me desfiz num punhado de sentimentalismos baratos, coloquei tudo a perder. E me diga, pra quê? O que ganhei com isso?  E o pior disso tudo foi a forma como você agiu. Com tamanhas façanhas sentimentais já citadas, me seduziu de uma forma tão covarde e cruel que até hoje me belisco ao me lembrar disso. Usou de toda uma estratégia eficaz para me fazer deixar levar nesta onda de falsos amores. E eu, apaixonado e tolo, cai nesta armadilha.

Aí então fez festa no meu coração. Quebrou, pisou, cuspiu, estraçalhou... Aquilo foi humilhante. Nunca antes fui tão manipulado por tanta frivolidade. Quando enfim despertei do torpor, e ele já ter ido embora, percebi a desgraça. Amaldiçoei-me, jurei que isso nunca iria acontecer novamente e que uma nova fortaleza iria ser feita, mais poderosa do que a anterior. Prometi e clamei tanta coisa, que nem me lembro da metade.
Agora depois de tantos meses, isto recomeça. Novo amor, nova paixão, nova ameaça. O meu cérebro, neste curto e tortuoso período de tempo, não pensa. Apenas existe a vontade de se jogar no mar aberto dos desesperados amorosos. Mas agora não sou tão inocente. Cada vez mais, a cada decepção perpetrada em meu coração, fico mais mordaz e astuto. Não irei me deixar convencer tão facilmente.


O céu desaba neste momento, e eu estou bem debaixo dele. Louco para receber os anjos que dele caem rumo ao inferno carnal das existências humanas. As existências dos tolos apaixonados. 

Olá

É satisfeito que inicio esse blog. Mas já deixo avisado: Não espere muita coisa daqui.