sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Atos

Senta. Pega algo pra beber. Fuma alguma coisa. Interaja comigo. Olhe nos meus olhos. Diga-me que tudo irá ficar bem. Diga-me que não houve culpados. Diga-me que tudo não passou de um mal entendo. Respire fundo. Traga mais forte. Beba mais. Sorria idiotamente. Galanteie-me. Seduza-me. Beije-me. Ame-me. Gema. Morda. Goze. Vire-se pra mim. Diga mais uma vez que tudo vai ficar bem. E durma.

Daqui do meu travesseiro eu te observo. Tão angelical dormindo, como uma criança indefesa. Eu queria que você soubesse o quanto eu me arrependo. Por mais que você diga que tudo irá se resolver, que eu não tinha como saber, me martirizo. E talvez enfim, um dia tudo isso se resolva. Por enquanto vamos dormir.

Acorde. Deseje bom dia. Beije-me. Pergunta-me se eu dormi bem. Sorria. Diga que dormiu perfeitamente. Diga que sonhou comigo. Ria. Diga que não está mentindo. Beija-me mais uma vez. Vai ao banheiro. Vai a cozinha. Prepara o café. Volta com uma bandeja. Diga que é pra comer tudo. Beije-me. Vai tomar banho. Vai trabalhar. Vai viver.

Acredito que eu tenha que fazer algo antes que o sol se ponha. Eu não consigo me perdoar. Eu simplesmente não consigo. Eu sou tolo, fraco. Mas não sou tolo e fraco a ponto de não fazer o que planejo fazer.

Chegue. Abraça-me. Beija-me. Pergunta como estou. Pergunta o que tem pra jantar. Vai ao banheiro. Toma banho. Volte. Jante. Diga como foi seu dia. Pergunte como foi o meu. Fique preocupado. Pergunte o que eu tenho. Diga que é pra eu esquecer isso. Faça uma cara de incredulidade. Discuta comigo. Xingue-me. Insulte-me. Humilhe-me. Diz que vai embora. Grite assustado. Sangre. Caia. Morra.

A polícia está vindo. Eu não irei oferecer resistência. Espero que compreendam que eu tive que fazer aquilo. Eu fui um tremendo filho da puta. O que eu fiz não se faz a ninguém. Eu traí. Mas se a culpa é minha, porque o matei? Ora, por acaso ele não me traiu também? Mas ainda assim a pergunta persiste: Porque eu matei? Um egoísmo meu, talvez. Cego como um velho. Um surto, talvez. Como um maníaco sanguinário. A polícia chegou lá na portaria. Estou consciente o suficiente para me matar. Nunca imaginei que matar alguém lhe deixava atordoado, como se estivesse bêbado. Sangue. Tanto sangue eu tenho. Ou tinha. Preto e vermelho. O teto está girando. Ele está me olhando, um olhar frio e distante. A boa notícia é que nós vamos nos encontrar. Espero. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ai Dudu

Você se lembra Dudu, de quando você me possuía com fúria naquele cantinho escuro do parque? De como você me conduzia naquele mar de prazer indecente e me dizia que tudo iria ficar bem? Pois eu me lembro. E também me lembro com tamanha facilidade que você era tudo que eu desejava. Que você, Dudu, era o homem da minha vida. Mas tipo, você não se importa. Aqui estou suplicando pela sua atenção, mas você simplesmente prefere as garotas. Ai Dudu, porque você não volta pra mim? Porque você não volta a me dizer que tudo irá ficar bem?

Mas sabe Dudu, estou até indo bem. Há outros garotos interessantes além de você. Na verdade escrevo pra ti apenas pra te dizer o quão estou indo bem. Não, mentira. Eu não estou bem. Ou estou. Eu não sei. Às vezes olho pras ruas esperando te reconhecer naqueles emaranhados de pessoas tristes e cansadas. Mas você não está lá. E sabe Dudu, dou graças a Deus. Pois você é diferente dos outros. Você Dudu, é especial. E sabe o que é pior? Você sabe disso e internamente se gaba. Como você é orgulhoso Dudu! Queria socar esse teu rosto lindo e dizer quão estúpido e egocêntrico você é. Mas mesmo com tudo isso tudo Dudu, eu te amo. E não é aquele tipo de amor de boteco, coisa leviana. É amor mesmo, amor de matar e morrer. Amor de mover céus e terra. Amor, puro e simplesmente amor.

Porque você não volta Dudu? Porque você não diz que sou teu homem também? Sabe, eu sei que sou teu homem. Pois você me dizia isso na hora que atingia o prazer. Mas agora não diz nada. Ai como te odeio Dudu!


Mas volta Dudu. Volta pra este pobre espírito bêbado. Volta Dudu, por favor. Volta a me possuir, volta a me dizer que sou teu. Pois sou teu. Só teu. Teu Dudu. Meu Dudu.

A Hora da Solidão

Meus pés me comandavam agora. Mas lá no fundo eu tinha noção de que deveria sair dali o mais rápido possível. Havia sangue em minhas mãos. Escarlates, rubros, vermelhos, brilhantes. Eu sentia um frio horrível na espinha, como se alguém tivesse me alisado com uma faca. A rua estava calma, meia-noite declarada. E eu tinha acabado de cometer um assassinato.

Se eu fechasse os olhos, ainda podia vê-la estirada numa poça de sangue. A faca a pingar o líquido nas minhas roupas. Os cães começarem a latir, chamando atenção. O seu rosto estava estampado o mais medonho dos medos. Não me arrependo do que eu fiz, mas se pudesse voltar no tempo eu teria tomado uma decisão melhor.

Era como sentir seu ânimo ser sufocado aos poucos. Imagina uma pessoa que sempre jurou te amar, te defender, te dar carinho. E que se essas coisas fossem esquecidas quando você tivesse dito aquilo. Eu quero, mas não consigo perdoa-la. Fazer isso seria ir contra mim mesmo. Ela teve o que mereceu, enfim reconhecia. Ainda era um ato abominável, assassinar a própria mãe, mas ela também não havia cometido um erro ao me odiar após eu ter dito que preferia os homens?


Não tinha lua naquela noite. Não havia malandros e prostitutas nas vielas e bares. Nem sequer havia vira-latas a ganir. Eu estava só no mundo agora. Mas pra falar a verdade, acho que sempre estive só. 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Adeus ao Mariano

Pouco a pouco, Mariano se aninhou em meus braços. Seu peito definido, seus músculos rijos como pedra em contato com o meu. Passou as mãos nos meus cabelos e desceu até o lóbulo da minha orelha direita. E numa voz que era uma mistura de desejo e rouquidão, disse:

- Agora, por favor.

Eu obedeci. Minha mão rapidamente desceu em seus genitais. Uma sutil brincadeira na madrugada. Ouvia seus gemidos fracos, suas súplicas de prazer, suas leves mordidas na minha orelha. E eu, hábil, a brincar com seu pênis. Não muito tempo após ter começado, senti um líquido espesso escorrer pela minha mão. E Mariano soltou um suspiro de alívio, de prazer. Deu-me um rápido beijo e foi ao banheiro. Durante todo o ocorrido, eu não havia sentido nada. Nadinha mesmo. Era como se fosse uma criança entediada brincando com um brinquedo do qual menos gostava. O chuveiro foi ligado. Mariano cantava baixinho, feliz da vida por causa de uma punheta. Eu não o culpo. Ele não tem nada a ver com meus problemas.

Alias, talvez até tenha. E talvez ele seja o principal problema. Após dois anos de um relacionamento satisfatório, com altos e baixos comuns, o amor enfim acabava. Da minha parte pelo menos. Não sei o que ocasionou isso. Tento pensar, tento puxar do fundo da memória o momento em que tudo mudou. Mas não encontro a lembrança exata. Apenas que de uma hora pra outra o amor acabara.

Eu queria dizer a Mariano, dizer o quanto sentia muito. Mas não tenho coragem, ele me parece tão feliz. Logo agora que foi promovido em seu trabalho. Nós passamos por tanta coisa, por tantas barreiras, para acabar assim. Não me reconheço. Eu amava o cara que estava no banheiro. Mas agora... Sinto apenas simpatia, amizade, nem sei definir.

Enfim levanto da cama. Olho-me no espelho. Apenas uma sombra da mulher que fui. Negras olheiras manchavam meu lindo rosto. Fios brancos já começavam a aparecer. Fiquei mais magra, meus dedos parecem galhos de árvore. Então desatei a chorar, baixo pra Mariano não ouvir. Que tola eu sou. Que cega eu fui. Reconheço agora que eu percebia que o amor tinha acabado, mas não queria desistir daquele relacionamento. Eu não sei por que permaneci nessa ilusão. Então surge uma desagradável ideia.

Eu iria embora. Pra bem longe do Mariano. Ele não merecia ser infeliz ao meu lado. Por milagre, ele não saiu do banheiro enquanto eu arrumava minhas coisas. Escrevi uma pequena carta, explicando ou pelo menos tentando explicar os motivos do término. Parei por um instante na frente da porta. Tentei ouvi algum ruído dentro do banheiro, mas só havia silencio. Então um tiro ecoa pela madrugada.

Desesperadamente tentei abrir a porta, mas estava trancada e bloqueada por alguma coisa. Chutei, esmurrei, empurrei com o ombro. Nada. Procurei pelo quarto. Não tinha nenhum objetivo que me fosse útil. Os vizinhos já se acordavam. Eu chorava descontroladamente, temendo o pior. Forcei mais uma vez e percebi que o peso que estava na porta caiu. Abri, e me deparei com uma cena que nunca mais vou esquecer.
Mariano estava sentado no vaso, com a cabeça banhada em sangue. Ainda estava molhado por causa do banho, com a água descendo pelas suas pernas. Tinha um revolver que eu desconhecia a origem na mão, que repousava no seu colo. Seus olhos abertos eram apavorantes, e sua boca cheia de vísceras me causou enjoos. Sentei-me no chão, já sem forças pra chorar ou permanecer em pé. Por que ele fez aquilo consigo mesmo? Tinha uma vida toda pela frente, com um ótimo emprego e família e amigos que o amavam. Lentamente foi me aproximando do corpo, a fim de pegar um pedaço de papel que estava preso na outra mão.

Ali dizia que o motivo de sua morte era que ele não me amava mais. E ele sabia que eu também não o amava. E que só iria se matar porque não imaginava sua vida sem mim. E só. Minha vontade na hora foi socar o corpo dele. Eu não valia uma vida, ninguém vale. Ele não tinha o direito de se matar por um motivo tão banal. Então fui ver se na arma havia alguma outra bala. Não tinha. Talvez ele tenha temido que eu me matasse também, após ver seu corpo inerte. Levantei-me, com as lágrimas já secas, e fui pra janela. Era isso, eu iria me matar também. Que burro, que burro! Se ele não me amava mais, como não podia imaginar sua vida sem mim? Acredito que tinha outros motivos, ignorados por mim. Mas agora isso não importava. Iria me matar, por motivos fúteis. Pois tudo isso foi ocasionado por motivos fúteis.


Ao acordar dentro de uma ambulância, ouvia uma voz distante a murmurar palavras incompreensíveis. O enfermeiro dizia palavras de conforto, lamentando o ocorrido. Aquele enfermeiro é tão parecido com o Mariano, pensei. Então recomecei a chorar. Eu devia ter conversado com ele antes, tentado consertar mais uma vez as coisas. Mas agora era tarde demais. Iria ter esse peso na consciência pro resto da vida. Adeus ao Mariano, pois ele foi embora. E enfim levou um pedaço de mim comigo. Aquele pedaço aonde residia o amor e afeição que existia entre nós.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Consumação

Ele ardia. Por conta da gasolina, as chamas rapidamente espalharam-se. Ela só observava. O fogo, que parecia seres míticos numa dança ritualística, lambia o corpo do namorado com fúria. Sua dor foi sentida na forma de grito. Um estridente som enchia o aposento, que começava a ficar cheio de fumaça. O cheiro de carne sendo queimada rapidamente apareceu, fazendo-a tapar o nariz delicadamente. Os olhos do seu namorado eram de pura agonia e dor. Já os da garota, de um brilho sinistro.

Ela viu as fotos. Seu namorado aparecia com outra menina, abraçando-a e beijando-a. Lágrimas rapidamente brotaram, e fez força para não derramá-las. Não iria chorar por aquele desgraçado. Guardou cuidadosamente as fotos no envelope. Alguém as enviara pela manhã, e não se sabia quem. Olhou pela janela, a fim de talvez ver algum vislumbre do remetente. Nada relevante. Foi na despensa, e rapidamente o achou. Um galão de gasolina.

Sempre tivera fascínio pelo fogo. Achava uma coisa mágica, divina, e principalmente, tentadora. Sempre que tinha raiva de alguma pessoa, a imaginava queimando. Ouvir o crepitar das chamas, o cheiro que sempre aparece, e até o grito que a pessoa entoa. Sentia prazer nisso, um prazer proibido.

Ligou para o namorado. Ele viria dali à uma hora. Tempo mais que suficiente. Além da gasolina, também havia trazido uma corda e um pequeno peso, uma barra. Sentou-se tranquilamente na frente da televisão. As fotos estavam no seu colo. Seria hoje que seu prazer seria consumado.

O namorado chegou. Ela, indiferente, o beijou. Ele estranhou o comportamento dela:
- Está tudo bem?
- Tudo ótimo
Ele olhou para o colo dela.
- O que é isso?
- Abra
O rapaz a obedeceu. Quando viu seu conteúdo, ficou sem palavras.
- Explique. – ela disse
- Amor... – começou a gaguejar – eu, eu...
A garota ergueu o peso e o usou para bater na cabeça do namorado. Quando acordou, estava amarrado. Ela estava sentada, observando-o.
- O que significa isso?
- Você me traiu.
- Mas não precisa disso – sua voz era uma mistura de raiva com medo – vamos conversar...
- Não há nada para conversar – ela pegou a gasolina. A cor fugiu do rosto do garoto, que começou a gritar.
- Me tire daqui! – olhava para a gasolina e para o isqueiro que ela trazia – não há necessidade disso!
- Não há, é verdade – ela estava terrivelmente calma – mas você me irritou. E você sabe o que imagino quando fico irritada.
- Sua louca! – começou a espernear – me tira daqui! Sua louca!

- Agora é tarde demais – derramou a gasolina no corpo do namorado – Realmente, agora é muito tarde.
Sim, era tarde. Seu desejo a dominava. Tinha que vê-lo queimando. Acendeu o isqueiro. A voz do garoto nada mais era do que um urro inaudível. Então ela jogou.

O fogo rapidamente ganhou seu espaço. O urro tornou-se de dor. Em vão, ele tentou se libertar. Guinchos, que podem ser chamados de sons, saíram de sua boca. A garota observava encantada, enfeitiçada pelos seres do fogo. Faziam sua dança com perfeição. Os gritos do rapaz começavam a morrer junto com seu dono. Sem ela perceber, o fogo começava atingir os móveis e a cortina. Os vizinhos começavam rodear a casa, gritando ou pegando mangueiras e baldes d’agua. Ela estava imóvel, assistindo aquela maravilhosa cena. Então o fogo veio em sua direção, e ela o abraçou. Ele começou a percorrer seu corpo, fazendo seu vestido se transformar nas cores alaranjadas, as cores daqueles seres fabulosos. Então passou para seu cabelo, e como numa mágica destes seres, o mesmo transformou-se em longas cascatas de chamas. Sentia o fogo penetra-lhe o corpo, mas não sentia dor. Sentia apenas prazer. A casa toda agora ardia. A inimiga eterna do fogo, a água, entrou na dança. Os vizinhos não puderam acreditar no que viam. A menina inteira estava pegando fogo e parecia não se importar. No último momento, olhou para as chamas. Sorriu um sorriso torto, defeituoso por causa dos lábios queimados. Abriu os braços. Iria juntar-se aos seres mágicos, numa eterna dança ardente.




quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Intragável



O cigarro parecia uma lanterna varando a noite. Eu tenho consciência de que deveria parar de fumar, mas os fatos me impedem. Ele estava do outro lado da sala, mas na verdade ele estava do outro lado da cidade. Ele era como uma sombra esguia, uma coisa escorregadia. E depois de tantas juras falhas de amor, depois de tantas promessas não cumpridas, eu agora me aquieto. Com um cigarro na mão, observo e penso.

O solitário maço na mesa, ao lado das frutas quase podres, enfeita o apartamento imundo. Ele odiava aquilo. Dizia que eu ia me matar, que ele odiava o cheiro, etc. Mas ele nunca entendeu meus motivos pra fumar, se é que há motivos. Mas depois ele sorria com um sorriso metálico, e me beijava. Sabe, desses beijos quentes. E ia comprar leite e pães, com o gosto do meu cigarro em seu hálito. Ele só aceitava isso porque me amava. 

E sempre após o sexo, ou nas noites de verão, aquela coisa suarenta e pegajosa, ele sempre me pedia um. Talvez fosse hipocrisia da parte dele, ou apenas queria participar e entender a necessidade de se fumar após o ato. Eu ria, e dava um cigarro pra ele. Ele ria ainda mais, e sua luz completava a minha.
No dia que terminamos eu fumei um maço inteiro. Assim, como quem bebe um copo d’água. Os olhos deles estavam vermelhos de tanto chorar, e sua veia no pescoço saltava quando ele reclamava do meu maldito cigarro. Eu replicava, e uma nova discussão começava. Até que uma hora ele pegou suas coisas, bateu a porta, e foi embora. 

Agora minha única companhia é o mal, é o ruim. É o suave e o maléfico. Mas é o que há. É meu único amante. As estrelas cintilam nos céus de primavera. E eu aqui, só. Pois meu cigarro acabou.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Bom Samaritano

Há alternativa? Eu não sei. No fundo do meu ser, eu queria que houvesse outra possibilidade. Mas não tem. Não vejo escapatória desse trágico destino. E eu não tenho mais tempo.

***

Mantinha um emprego simples, mas confortável em uma indústria de estofados. Todo o dia, das sete as cinco, eu encarnava o tipo perfeito de empregado dedicado e trabalhava quase sem parar na administração da fábrica. Eu não notava a passagem do tempo até a hora do almoço, e depois a hora da saída. Chegava em casa, comia algo, tomava banho e ia dormir. Lia às vezes um livro, ouvia uma música, via uma televisão. Aparentemente eu estava confortável com aquela situação. Mas a rotina me cansou, e comecei a buscar desesperadamente um passatempo, uma distração que me desse motivo para ainda permanecer ali. Então conheci Valéria.

Valéria era uma garota alta, no auge dos seus vinte e seis anos. Corpo magro, cabelos louros batendo na cintura. De uma inteligência surpreendente, de uma beleza cativante. Pergunto-me até hoje o que Valéria viu em mim, um tipo qualquer sem graça. Começamos a sair, uma volta no parque, uma ida ao cinema. De tão tolo e babaca que sou, foi ela quem tomou a iniciativa e me beijou. Foi por sua vontade que transamos, um tempo depois. Sentia que ela realmente gostava de mim, mas estava ficando cansada. Eu não acrescentava nada em sua vida, não conseguia alcançar suas expectativas. Então eis que ela me abandona assim como quem se livra de um filhote de gato.

O mais incrível é que não me abalei muito. Sabia que essa hora iria chegar. Voltei a focar no trabalho, e naquela vida medíocre de sempre.

Por razões que nem mesmo sei ao certo, foi demitido. Quase sem notar, fui vendo o banco levar minha casa e eu parar na rua. Vi-me entrando num vício horroroso de álcool. Ia a bar em bar, gastando até os últimos tostões. Pulava de albergue em albergue. Caia no lodo da desgraça, e não fazia nada para me levantar.
Então encontrei Dona Amélia. Uma senhora simpática, de coração enorme, que conseguiu me tirar do vício antes que eu me afundasse de vez. Permitiu que eu morasse no quartinho nos fundos da sua casa, e que trabalhasse em sua farmácia. Passei anos atrás daquele balcão, com um sorriso cada vez maior nos lábios. Fui ganhando a confiança de Dona Amélia. Fui me tornando o filho que ela nunca teve.

Como ela não tinha praticamente nenhuma família, deixou tudo que tinha para mim. O que foi uma surpresa, confesso.

Em um inverno rigoroso, Dona Amélia adoeceu. E foi piorando e piorando até falecer. Morreu lúcida, me dando ordens para que não deixasse seu negócio morrer junto com ela. Ela se foi me chamando de “filho”.
Com o dinheiro que ela me deixou, modernizei a farmácia. Contratei funcionários, abri outro tipo de negócio na mesma rua. Fui ganhando espaço na comunidade, tornando meu nome respeitável. O que não foi difícil. Eram pessoas carentes de atenção e de cuidados, e mantinha um pequeno estoque para doação. Sem perceber, fui entrando na vida daquelas pessoas e transformando o que elas eram.

Cinco anos depois da morte de Dona Amélia, mantinha uma sólida rede de farmácia em vários pontos da cidade. Mas sem perceber, fui mudando o que eu era. Outrora um rapaz tímido e sem iniciativa, agora um homem firme e decidido. As pessoas vinham até mim às dezenas, pedindo ajuda. E eu concedia, como um bom samaritano.

Numa tarde de abril, apressado em chegar em um evento, não vi a criança que atravessava a rua. Apenas ouvi o choque e um grito. As pessoas vinham ver o que era, e se surpreendiam e se enfureciam quando viam que eu tinha atropelado uma criança. Quis explicar que não tive culpa, que não vi. Mas eles estavam cegos de ódio. Percebi que tinha muitos ali que tinha ajudado, em remédios e até em dinheiro. Ainda conseguiram me bater, mas fugi a pé. Olhei pra trás num instante e vi que estava colocando fogo no meu carro.
Não sai mais de casa. Com esse incidente e com algumas mentiras ao meu respeito, as pessoas deixaram de comprar em minhas lojas. Fui falindo, me afundando em dívidas. Voltei a perder tudo novamente.

***


E aqui estou redigindo toda essa história aos sons da população ensandecida na frente da minha casa. Como nos tempos medievais, eles usam tochas e porretes. Eles começaram a jogar essas tochas no telhado. E está pegando fogo. Eu não sei o que fazer. Eu não sei se irei sobreviver. Caso esse pedaço de papel sobreviva, fica registrada a história da minha vida. Não seja um tolo como eu fui. Os bons samaritanos sempre se ferram.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Amsterdã

E então, de um momento para outro, decidiram ir para Amsterdã. Não sabiam como, não sabiam o porquê, mas iriam. Rapidamente foram ao caixa eletrônico, sacaram todo o dinheiro. Pegaram as malas, colocaram o que achavam essencial. Entraram em contato com uma agência de turismo, procurando saber o melhor roteiro. E o mais barato.

Ligaram pros pais, que não conseguiram entender quase nada. Disseram apenas que iriam para Amsterdã e que dentro de uma semana estariam de volta. Os pais não tiveram como proibir. Afinal, eram de maiores e tinham o dinheiro. Pediram para que eles tivessem cuidado e que ligassem todo dia.

Após toda essa burocracia, rumaram para o aeroporto. O voo partiria dali à uma hora. Nem deu tempo de ligar pros amigos. Estavam tão ansiosos que nem disso se lembraram. Eles não haviam parado para pensar nessa tão repentina decisão. Queriam ir para Amsterdã, queriam fazer alguma coisa lá. Não eram adeptos a maconha, não planejavam transar em praça pública. Naquele momento parecia que uma força inexplicável os puxava pra lá. E eles não queriam saber a origem dessa força. Queriam apenas consumá-la.


Mas a caminho do aeroporto, um acidente aconteceu. Um caminhão atingiu em cheio o táxi que estavam. Capotaram no meio da avenida, batendo em outros carros. O taxista morreu na hora, com um pedaço de ferro atravessado no peito. Ela parecia que também estava morta, pois não respondia os chamados desesperados dele. E ele, com a perna quebrada, gritava ao mesmo tempo por ajuda e pela sua amada. Então aos poucos foi perdendo a consciência. Via pessoas do lado de fora tentando ajudar, mas elas pareciam tão distantes. Ele colocou a mão na cabeça, e percebeu que sangrava profusamente. As pessoas notaram isso também e pediam um médico. Ele as olhava com uma cara boba, de como soubesse que as coisas ficariam bem. Fechou os olhos, imaginando a Amsterdã. Os dois iriam para lá. Sim, estavam quase chegando.