Há alternativa? Eu não sei. No fundo do meu ser, eu queria
que houvesse outra possibilidade. Mas não tem. Não vejo escapatória desse
trágico destino. E eu não tenho mais tempo.
***
Mantinha um emprego simples, mas confortável em uma
indústria de estofados. Todo o dia, das sete as cinco, eu encarnava o tipo
perfeito de empregado dedicado e trabalhava quase sem parar na administração da
fábrica. Eu não notava a passagem do tempo até a hora do almoço, e depois a
hora da saída. Chegava em casa, comia algo, tomava banho e ia dormir. Lia às
vezes um livro, ouvia uma música, via uma televisão. Aparentemente eu estava
confortável com aquela situação. Mas a rotina me cansou, e comecei a buscar
desesperadamente um passatempo, uma distração que me desse motivo para ainda
permanecer ali. Então conheci Valéria.
Valéria era uma garota alta, no auge dos seus vinte e seis
anos. Corpo magro, cabelos louros batendo na cintura. De uma inteligência
surpreendente, de uma beleza cativante. Pergunto-me até hoje o que Valéria viu
em mim, um tipo qualquer sem graça. Começamos a sair, uma volta no parque, uma
ida ao cinema. De tão tolo e babaca que sou, foi ela quem tomou a iniciativa e
me beijou. Foi por sua vontade que transamos, um tempo depois. Sentia que ela
realmente gostava de mim, mas estava ficando cansada. Eu não acrescentava nada
em sua vida, não conseguia alcançar suas expectativas. Então eis que ela me abandona
assim como quem se livra de um filhote de gato.
O mais incrível é que não me abalei muito. Sabia que essa
hora iria chegar. Voltei a focar no trabalho, e naquela vida medíocre de
sempre.
Por razões que nem mesmo sei ao certo, foi demitido. Quase
sem notar, fui vendo o banco levar minha casa e eu parar na rua. Vi-me entrando
num vício horroroso de álcool. Ia a bar em bar, gastando até os últimos
tostões. Pulava de albergue em albergue. Caia no lodo da desgraça, e não fazia
nada para me levantar.
Então encontrei Dona Amélia. Uma senhora simpática, de
coração enorme, que conseguiu me tirar do vício antes que eu me afundasse de
vez. Permitiu que eu morasse no quartinho nos fundos da sua casa, e que
trabalhasse em sua farmácia. Passei anos atrás daquele balcão, com um sorriso
cada vez maior nos lábios. Fui ganhando a confiança de Dona Amélia. Fui me
tornando o filho que ela nunca teve.
Como ela não tinha praticamente nenhuma família, deixou tudo
que tinha para mim. O que foi uma surpresa, confesso.
Em um inverno rigoroso, Dona Amélia adoeceu. E foi piorando
e piorando até falecer. Morreu lúcida, me dando ordens para que não deixasse
seu negócio morrer junto com ela. Ela se foi me chamando de “filho”.
Com o dinheiro que ela me deixou, modernizei a farmácia.
Contratei funcionários, abri outro tipo de negócio na mesma rua. Fui ganhando
espaço na comunidade, tornando meu nome respeitável. O que não foi difícil.
Eram pessoas carentes de atenção e de cuidados, e mantinha um pequeno estoque
para doação. Sem perceber, fui entrando na vida daquelas pessoas e
transformando o que elas eram.
Cinco anos depois da morte de Dona Amélia, mantinha uma
sólida rede de farmácia em vários pontos da cidade. Mas sem perceber, fui
mudando o que eu era. Outrora um rapaz tímido e sem iniciativa, agora um homem
firme e decidido. As pessoas vinham até mim às dezenas, pedindo ajuda. E eu concedia,
como um bom samaritano.
Numa tarde de abril, apressado em chegar em um evento, não
vi a criança que atravessava a rua. Apenas ouvi o choque e um grito. As pessoas
vinham ver o que era, e se surpreendiam e se enfureciam quando viam que eu
tinha atropelado uma criança. Quis explicar que não tive culpa, que não vi. Mas
eles estavam cegos de ódio. Percebi que tinha muitos ali que tinha ajudado, em
remédios e até em dinheiro. Ainda conseguiram me bater, mas fugi a pé. Olhei
pra trás num instante e vi que estava colocando fogo no meu carro.
Não sai mais de casa. Com esse incidente e com algumas
mentiras ao meu respeito, as pessoas deixaram de comprar em minhas lojas. Fui
falindo, me afundando em dívidas. Voltei a perder tudo novamente.
***
E aqui estou redigindo toda essa história aos sons da
população ensandecida na frente da minha casa. Como nos tempos medievais, eles
usam tochas e porretes. Eles começaram a jogar essas tochas no telhado. E está
pegando fogo. Eu não sei o que fazer. Eu não sei se irei sobreviver. Caso esse
pedaço de papel sobreviva, fica registrada a história da minha vida. Não seja
um tolo como eu fui. Os bons samaritanos sempre se ferram.
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