terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Bom Samaritano

Há alternativa? Eu não sei. No fundo do meu ser, eu queria que houvesse outra possibilidade. Mas não tem. Não vejo escapatória desse trágico destino. E eu não tenho mais tempo.

***

Mantinha um emprego simples, mas confortável em uma indústria de estofados. Todo o dia, das sete as cinco, eu encarnava o tipo perfeito de empregado dedicado e trabalhava quase sem parar na administração da fábrica. Eu não notava a passagem do tempo até a hora do almoço, e depois a hora da saída. Chegava em casa, comia algo, tomava banho e ia dormir. Lia às vezes um livro, ouvia uma música, via uma televisão. Aparentemente eu estava confortável com aquela situação. Mas a rotina me cansou, e comecei a buscar desesperadamente um passatempo, uma distração que me desse motivo para ainda permanecer ali. Então conheci Valéria.

Valéria era uma garota alta, no auge dos seus vinte e seis anos. Corpo magro, cabelos louros batendo na cintura. De uma inteligência surpreendente, de uma beleza cativante. Pergunto-me até hoje o que Valéria viu em mim, um tipo qualquer sem graça. Começamos a sair, uma volta no parque, uma ida ao cinema. De tão tolo e babaca que sou, foi ela quem tomou a iniciativa e me beijou. Foi por sua vontade que transamos, um tempo depois. Sentia que ela realmente gostava de mim, mas estava ficando cansada. Eu não acrescentava nada em sua vida, não conseguia alcançar suas expectativas. Então eis que ela me abandona assim como quem se livra de um filhote de gato.

O mais incrível é que não me abalei muito. Sabia que essa hora iria chegar. Voltei a focar no trabalho, e naquela vida medíocre de sempre.

Por razões que nem mesmo sei ao certo, foi demitido. Quase sem notar, fui vendo o banco levar minha casa e eu parar na rua. Vi-me entrando num vício horroroso de álcool. Ia a bar em bar, gastando até os últimos tostões. Pulava de albergue em albergue. Caia no lodo da desgraça, e não fazia nada para me levantar.
Então encontrei Dona Amélia. Uma senhora simpática, de coração enorme, que conseguiu me tirar do vício antes que eu me afundasse de vez. Permitiu que eu morasse no quartinho nos fundos da sua casa, e que trabalhasse em sua farmácia. Passei anos atrás daquele balcão, com um sorriso cada vez maior nos lábios. Fui ganhando a confiança de Dona Amélia. Fui me tornando o filho que ela nunca teve.

Como ela não tinha praticamente nenhuma família, deixou tudo que tinha para mim. O que foi uma surpresa, confesso.

Em um inverno rigoroso, Dona Amélia adoeceu. E foi piorando e piorando até falecer. Morreu lúcida, me dando ordens para que não deixasse seu negócio morrer junto com ela. Ela se foi me chamando de “filho”.
Com o dinheiro que ela me deixou, modernizei a farmácia. Contratei funcionários, abri outro tipo de negócio na mesma rua. Fui ganhando espaço na comunidade, tornando meu nome respeitável. O que não foi difícil. Eram pessoas carentes de atenção e de cuidados, e mantinha um pequeno estoque para doação. Sem perceber, fui entrando na vida daquelas pessoas e transformando o que elas eram.

Cinco anos depois da morte de Dona Amélia, mantinha uma sólida rede de farmácia em vários pontos da cidade. Mas sem perceber, fui mudando o que eu era. Outrora um rapaz tímido e sem iniciativa, agora um homem firme e decidido. As pessoas vinham até mim às dezenas, pedindo ajuda. E eu concedia, como um bom samaritano.

Numa tarde de abril, apressado em chegar em um evento, não vi a criança que atravessava a rua. Apenas ouvi o choque e um grito. As pessoas vinham ver o que era, e se surpreendiam e se enfureciam quando viam que eu tinha atropelado uma criança. Quis explicar que não tive culpa, que não vi. Mas eles estavam cegos de ódio. Percebi que tinha muitos ali que tinha ajudado, em remédios e até em dinheiro. Ainda conseguiram me bater, mas fugi a pé. Olhei pra trás num instante e vi que estava colocando fogo no meu carro.
Não sai mais de casa. Com esse incidente e com algumas mentiras ao meu respeito, as pessoas deixaram de comprar em minhas lojas. Fui falindo, me afundando em dívidas. Voltei a perder tudo novamente.

***


E aqui estou redigindo toda essa história aos sons da população ensandecida na frente da minha casa. Como nos tempos medievais, eles usam tochas e porretes. Eles começaram a jogar essas tochas no telhado. E está pegando fogo. Eu não sei o que fazer. Eu não sei se irei sobreviver. Caso esse pedaço de papel sobreviva, fica registrada a história da minha vida. Não seja um tolo como eu fui. Os bons samaritanos sempre se ferram.

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