sábado, 13 de setembro de 2014

Relembrança


A luz está me fazendo em pedaços”
Dr. Manhattan

Vamos relembrar do seu corpo sobreposto ao meu. De quando você suava fino em contato com minha pele, dos seus lábios perpetrando os meus. Eu tinha prometido a mim mesmo que não lamentaria e que sequer faria menção ao seu nome. Mas eu, como um bom e servil apaixonado, arrasto as correntes da prisão em direção a sua fatídica memória e existência.

Eu quero relembrar o seu corpo, meu amor. Cada detalhe perverso e delicioso, cada rusga de preocupação na sua testa ao me ouvir dizer que voltei a pé para casa. Quero relembrar tudo, desde o momento insano em que você entrou na minha vida até o momento triste que você saiu.

Você saiu, meu amor. Saiu e deixou a porta aberta, e por ela entra um forte vento invernal.

Gostaria de tentar conceber meus dias sem você, mas isso se mostra impossível. Quando me dou conta de que você está em cada centímetro do apartamento, e pior ainda, em cada centímetro do meu âmago, caio em desespero. Passei a acreditar que você não é humano, que sua existência na Terra é puramente castigo divino.

Mas vamos relembrar. Lembra-se de quando pedimos pizza de calabresa e fomos assistir a um filme em plena sexta-feira à noite? Sim, eu sei que fizemos isso praticamente em todas as sextas-feiras desde o início do nosso relacionamento. Tente se concentrar em uma específica... Aquela sexta-feira em que você me disse: eu te amo. Em meios a mordidas na pizza e dois goles no vinho, e em enquanto a Kate Winslet gritava dizendo que o filho da Jodie Foster mereceu apanhar do filho dela. Pois já não bastava a Kate estar gritando, você também tinha que gritar. E as consequências desse seu ato foram mais vis e terríveis do que qualquer filme do Polanski.

Você gritou, e me soltou na claridade. Tudo me fez em pedaços, meu amor. Você me jogou na porra do abismo amoroso, aquele em que a gente tenta se agarrar nas paredes, mas descobre que as mesmas são completamente lisas. Mas sinceramente, eu nem fiz menção em me segurar. Pois eu confiava em você, e por Deus, eu deveria ter ouvido o conselho dos nossos pais: só confie em si mesmo.

Mas eu estava tão ciente de que você me protegeria das águas turvas do poço, meu amor. Acreditava fortemente que você me colocaria nos seus ombros, e diria para eu não me preocupar. Não adianta praguejar contra os céus, dizer o quão fui burro. É chover no molhado, é dar murro em ponta de faca. Eu tinha ciência do que poderia acontecer. Sempre tive. Mas eu estava tão absorto na ideia de ter uma paixão, de finalmente adentrar pelos portões dos paraísos artificiais. Eu me ceguei de propósito, e veja agora: eu ainda permaneço cego, embora hoje em dia a cegueira seja de dor e não mais de amor.

Vamos voltar aquele dia tão singular, 29 de fevereiro. Depois de termos feito amor, você começou a discutir por uma besteira qualquer. Eu sei, o motivo de rompermos não foi à discussão em si. Nunca é. Foi tudo aquilo que ardia por debaixo dos panos, de toda sujeira que mês após mês escondíamos. Tudo veio à tona como uma ferida podre é exposta pelo médico. Mas o médico sabe como cuidar da ferida, e naquele momento eu assumi esse papel. Vi ali a tentativa de fuga, de conceber enfim paz aos nossos corações. Eu te amo, e você ainda me ama. Mas simplesmente não podemos mais ficar juntos, porque não nos suportamos.

A lua tímida fustiga meu corpo. Eu tomo o meu vinho mais caro em um copo de plástico, sem filme e sem você.


E como é péssima a sensação.