segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Sol se Despedaça

Não havia mais flores. Não tinha mais sorrisos. Lígia era apenas um punhado de mágoas e dores incuráveis. O seu já bagunçado apartamento exalava estranhos odores. As plantas estavam entregues a sorte da natureza, seu gato há muito aprendera a caçar a própria comida. Pois Lígia não agia, não se movimentava. Lígia nem vivia mais.

Ela queria ouvir as batidas do seu coração, aqueles toques ritmados tão conhecidos. Apenas ouvia sonos descompassados, como se ele tivesse desaprendido a bater e tentava pegar o jeito de forma titubeante. Lígia olhou pela janela, mas não via nada por causa das negras cortinas. Num grande esforço, ergue-se do chão e abriu as persianas. Seu primeiro impulso foi proteger os olhos da forte luz que emanava dos céus. Com a vista se acostumando a claridade, percebeu o quão imundo estava seu apartamento. Ela não se importou. Observou a cidade. Recife tirava a sesta revestida de um forte sol de fevereiro. O límpido céu permitia que o sol despejasse seus raios pelos quatro cantos da cidade. A Avenida Conde da Boa Vista parecia cintilar diante de tanto calor. O rio Capibaribe era um tapete de cristais e diamantes. Com exceção das avenidas, as ruas transversais estavam praticamente desertas. Lígia bocejou, perguntando-se quantas horas tinha permanecido incauta em seu abrigo sentimental. Foi a cozinha procurar algo decente pra comer, mas só tinha biscoitos velhos e uma garrafa de suco. Suspirou. Tinha esquecido de fazer compras.

Na verdade não tinha esquecido. Apenas não teve vontade. Não tinha vontade, não tinha mais anseios, não tinha mais desejos... Tudo aquilo ele levara. Tudo aquilo se fora.

Depois de haver comido, fumou um cigarro pra tentar relaxar. Permitiu que o sol invadisse sua casa, expulsando a escuridão pro seu lugar de direito e fazendo visíveis as minúsculas partículas de poeira. Findo o cigarro, decidiu limpar tudo aquilo. Jogou o lixo fora, varreu e passou pano no piso, lavou os pratos e os banheiros, colocou a comida do gato, tentou reviver as plantas. Deixou seu quarto por último. Arrumou a cama, tirou toda sujeira. Então Lígia decidiu mexer em seu guarda-roupa. Era a primeira vez que ela fazia aquilo desde a ida dele. Sentiu-se repentinamente atordoada, recebendo enfim o choque das informações. Pôs então a chorar alto, não se importando com os vizinhos. Porque diabos ele tinha partido? Ela não tinha sido boa o suficiente, dada o suficiente? O coração apertava, o estômago revirava, e ela sentia nojo de si mesma. Fora tola em apaixonar-se por tamanho patife arrogante, fora estúpida em acreditar que daquela vez seria diferente. Mas não fora e nunca seria diferente. No fundo, mas lá no fundo, o amor é previsível. Sabemos que iremos sofrer por ele, sabemos que não teremos recompensas imediatas, sabemos que terminaremos na merda. Mas desistimos? Cogitamos em tentar mudar? Não. Apenas aceitamos isso, pois não temos força contra o amor. Não temos força com nós mesmos.

Lígia queria morrer. Seria tão bom que sua vida fosse sugada por algum ceifador sinistro. Ela queria isso, almejava isso. Deus era brincalhão, não lhe permitia um fim digno. Lígia odiava a si mesma com tanta intensidade, que se cortava com frequência. Aquilo não era sinal de alívio, esperança, tristeza ou qualquer coisa parecida. Aquilo era ódio, puro ódio.


Quando percebeu que a janela do seu quarto ainda estava bloqueada, rapidamente deixou que o sol fizesse seu trabalho. E quando este começou sua dança luminosa, Lígia pode percebeu uma coisa. Pequeninas formas enérgicas de vida saltavam por todo o aposento. Tudo parecia uma coreografia bem ensaiada. Lígia não podia, não queria entender o que era aquilo. Depois de dias, sorriu. Pouco tempo depois também bailava, enfeitiçada pela inebriante chegada da felicidade e do alívio em seu coração. Quando compreendeu que tudo aquilo era ilusão, que tudo o que sentia era apenas uma miragem, concluiu que era inútil sofrer por um amor tão supérfluo. Mas ela estava cansada de pensar naquilo. Rodopiou mais uma vez, e continuou a dançar com aqueles estranhos seres. 

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