Não havia mais flores. Não tinha mais sorrisos. Lígia era
apenas um punhado de mágoas e dores incuráveis. O seu já bagunçado apartamento
exalava estranhos odores. As plantas estavam entregues a sorte da natureza, seu
gato há muito aprendera a caçar a própria comida. Pois Lígia não agia, não se
movimentava. Lígia nem vivia mais.
Ela queria ouvir as batidas do seu coração, aqueles toques
ritmados tão conhecidos. Apenas ouvia sonos descompassados, como se ele tivesse
desaprendido a bater e tentava pegar o jeito de forma titubeante. Lígia olhou
pela janela, mas não via nada por causa das negras cortinas. Num grande
esforço, ergue-se do chão e abriu as persianas. Seu primeiro impulso foi
proteger os olhos da forte luz que emanava dos céus. Com a vista se acostumando
a claridade, percebeu o quão imundo estava seu apartamento. Ela não se
importou. Observou a cidade. Recife tirava a sesta revestida de um forte sol de
fevereiro. O límpido céu permitia que o sol despejasse seus raios pelos quatro
cantos da cidade. A Avenida Conde da Boa Vista parecia cintilar diante de tanto
calor. O rio Capibaribe era um tapete de cristais e diamantes. Com exceção das
avenidas, as ruas transversais estavam praticamente desertas. Lígia bocejou,
perguntando-se quantas horas tinha permanecido incauta em seu abrigo
sentimental. Foi a cozinha procurar algo decente pra comer, mas só tinha
biscoitos velhos e uma garrafa de suco. Suspirou. Tinha esquecido de fazer
compras.
Na verdade não tinha esquecido. Apenas não teve vontade. Não
tinha vontade, não tinha mais anseios, não tinha mais desejos... Tudo aquilo
ele levara. Tudo aquilo se fora.
Depois de haver comido, fumou um cigarro pra tentar relaxar.
Permitiu que o sol invadisse sua casa, expulsando a escuridão pro seu lugar de
direito e fazendo visíveis as minúsculas partículas de poeira. Findo o cigarro,
decidiu limpar tudo aquilo. Jogou o lixo fora, varreu e passou pano no piso,
lavou os pratos e os banheiros, colocou a comida do gato, tentou reviver as
plantas. Deixou seu quarto por último. Arrumou a cama, tirou toda sujeira.
Então Lígia decidiu mexer em seu guarda-roupa. Era a primeira vez que ela fazia
aquilo desde a ida dele. Sentiu-se repentinamente atordoada, recebendo enfim o
choque das informações. Pôs então a chorar alto, não se importando com os
vizinhos. Porque diabos ele tinha partido? Ela não tinha sido boa o suficiente,
dada o suficiente? O coração apertava, o estômago revirava, e ela sentia nojo
de si mesma. Fora tola em apaixonar-se por tamanho patife arrogante, fora
estúpida em acreditar que daquela vez seria diferente. Mas não fora e nunca
seria diferente. No fundo, mas lá no fundo, o amor é previsível. Sabemos que
iremos sofrer por ele, sabemos que não teremos recompensas imediatas, sabemos
que terminaremos na merda. Mas desistimos? Cogitamos em tentar mudar? Não.
Apenas aceitamos isso, pois não temos força contra o amor. Não temos força com
nós mesmos.
Lígia queria morrer. Seria tão bom que sua vida fosse sugada
por algum ceifador sinistro. Ela queria isso, almejava isso. Deus era
brincalhão, não lhe permitia um fim digno. Lígia odiava a si mesma com tanta
intensidade, que se cortava com frequência. Aquilo não era sinal de alívio,
esperança, tristeza ou qualquer coisa parecida. Aquilo era ódio, puro ódio.
Quando percebeu que a janela do seu quarto ainda estava
bloqueada, rapidamente deixou que o sol fizesse seu trabalho. E quando este
começou sua dança luminosa, Lígia pode percebeu uma coisa. Pequeninas formas
enérgicas de vida saltavam por todo o aposento. Tudo parecia uma coreografia
bem ensaiada. Lígia não podia, não queria entender o que era aquilo. Depois de
dias, sorriu. Pouco tempo depois também bailava, enfeitiçada pela inebriante
chegada da felicidade e do alívio em seu coração. Quando compreendeu que tudo
aquilo era ilusão, que tudo o que sentia era apenas uma miragem, concluiu que
era inútil sofrer por um amor tão supérfluo. Mas ela estava cansada de pensar
naquilo. Rodopiou mais uma vez, e continuou a dançar com aqueles estranhos
seres.
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